Três décadas e meia depois de sair da casa dos meus pais estou sendo abençoado com voltar a conviver sobre o mesmo teto com a minha mãe, agora uma senhora octagenária. Infelizmente o que levou a esta nova convivência foi a pandemia de Covid-19 que assolou o mundo e, particularmente, o Brasil. Apesar da idade relativamente avançada, minha mãe é completamente independente e sempre morou só. Sozinha adquiriu o hábito de ligar o rádio domingo pela manhã, bem cedinho, para assistir à missa.
Enquanto eu fazia o café ouvia atento à pregação do padre que falava sobre Jesus ser o único caminho para a salvação e que todos os outros deuses seriam deuses mortos. E seriam deuses mortos porque seriam falsos, não existiriam. Indo além do Evangelho como todo líder religioso sempre faz, o padre fez uma dura crítica a quem, como eu, prefere acreditar em uma força maior, superior a nós, a mim e a ele inclusive. Segundo o sacerdote, pessoas como eu, que preferem não personificar o divino, simplesmente, não acreditariam em nada e estariam perdidos, prontos para uma braçada no lago do inferno. Da mesma forma, os umbandistas, os hindus, os muçulmanos, os ateus, todos estariam inevitavelmente perdidos, alijados da salvação eterna, apenas por não concordarem em aceitar o Jesus das igrejas como salvador. E falo em Jesus das igrejas porque existem claramente dois Jesus e isto é discutido até mesmo na Bíblia. Se os sacerdotes e fiéis gastassem um pouco do seu tempo estudando seus próprios livros sagrados, saberiam disto.
Há o Jesus deificado, o Cristo, aquele cuja santidade era quantificada mais pelos milagres que fazia do que pelas palavras que proferia e há o Jesus humano, citado largamente nos quatro evangelhos e é deste Jesus que muitos religiosos costumam fugir como o diabo foge da cruz. Este Jesus humanizado não tolera discriminação de tipo alguma, seja religiosa, racial, de classe ou o que for. Muito menos tolera sacerdotes que exploram e oprimem as suas ovelhas. O Jesus dos evangelhos não tolera sequer que usem seu nome para atar fardos pesados às costas das pessoas. Definitivamente é .um Jesus incômodo a boa parte dos religiosos, que não serve às igrejas e aos interesses dos poderosos.
Eu acredito muito no Jesus histórico, no homem de Nazaré. Ao mesmo tempo, acredito piamente que este homem não é mais apenas um homem e se tornou uma ideia. E uma ideia bastante perigosa e subversiva para muitas pessoas. Pessoas que usam a religião para oprimir o próximo, seja o próximo um irmão da sua fé, uma ovelha do seu rebanho ou aqueles que, como eu, ousam pensar fora da caixa da religião.
Sinto muito, Sr. padre. Eu continuarei acreditando em uma força maior sim. E continuarei acreditando que aquele Jesus dos evangelhos, aquele que derrubou as barracas dos mercenários à frente do templo, aquele que peitou os sacerdotes que tentaram coopta-lo, aquele que defendeu a adúltera, aquele que aceitou que a prostituta lhe lavasse os pés, aquele que almoçou na casa do ladrão, aquele que viu a maior dignidade e fé em um estrangeiro praticante de outra religião, aquele Jesus é esta força maior em que eu acredito e se não for, é seu melhor representante.
Porque Jesus é muito mais que um homem, muito mais que uma personificação de um deus, esteja ele vivo ou morto. Jesus é uma receita viva de paz, boa vontade e convivência pacífica entre os seres humanos. Enfim, mais que uma ideia, Jesus é "a" ideia. Ideia ciada por Deus, Oxalá, Krishna, Alá, o Arquiteto, a Força Maior., deem cada um o nome que quiserem dar. Jesus é uma águia com alma de andorinha que não cabe na gaiola estreita de nenhuma religião. E vai continuar não cabendo. E eu acredito muito nesta ideia, nesta força maior chamada Jesus de Nazaré.
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