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A CARTA ANÔNIMA

 Quando eu era menino, ainda ginasiano, lá pela sexta série, a professora resolveu fazer uma dinâmica bastante estranha. Naquele tempo ainda não tinha esse nome mas acho que ela quis mesmo fazer uma dinâmica, visto pelas lentes dos dias atuais. Ela pediu que cada aluno escrevesse uma carta anônima, romântica, se declarando para uma outra pessoa. 
Eu confesso que não tive a brilhante ideia de escrever uma carta anônima para mim mesmo e assim acabei sem receber nenhuma carta falando sobre os meus maravilhosos dotes físicos e intelectuais. Já um outro garoto, bonitão, recebeu quase todas as cartas das meninas da sala. E sabe-se lá se não recebeu nenhuma carta vinda de algum colega do sexo masculino, escrita dentro de algum armário virtual.
Eu, é claro, escrevi a minha carta para uma menina branca que nem papel, de óculos de graus enormes e um aparelho dentário que mais parecia um bridão de cavalos. Ela era muito tímida e recatada, havia nascido no norte europeu mas já morava  no Brasil desde menina. Não posso dizer com segurança se ela realmente me atraia ou se eu resolvi escrever uma carta anônima para a menina mais improvável de recebe-la, mas o fato é que foi para ela que eu escrevi. E, no final, assinei meu nome.
A professora me devolveu a carta pedindo que eu a reescrevesse, desta vez sem assinar, pois se tratava justamente de uma carta "anônima", ou seja, sem identificação do remetente. Reescrevi. E assinei novamente. E, novamente, tive minha carta anônima identificada e  devolvida pela professora. Reescrevi e desta vez, finalmente, não assinei.
A menina ficou muito contente de receber a sua única carta e como fazia parte do combinado, a leu para os outros alunos. Agradeceu ao admirador anônimo e disse ter se emocionado, mas todos os meus colegas foram unânimes em afirmar que eu teria sido o autor da carta anônima, ainda que estivesse sem a minha assinatura. Pois é, nem se eu não assinasse, eu conseguiria escrever uma carta realmente anônima.
Posto isto, eu quero dizer que escrever cartas anônimas - falo especificamente das cartas ameaçadoras, agressivas, não das românticas -  é o mais baixo que um ser humano pode chegar em termos de falta de caráter. Aparentemente protegido pelo anonimato, o signatário vocifera para o destinatário tudo aquilo que jamais terá coragem de lhe dizer cara a cara. É como um tiro dado pelas costas, sem ao menos dar a chance ao assassinado de olhar nos olhos de seu assassino na hora de sua morte.
Cartas anônimas são uma referência de caráter e coragem. Quem tem ambos, não as escreve. Ou são covardes como os admiradores anônimos, expondo a própria timidez extrema, ou são diabólicos, como os que as escrevem enquanto se escondem nas surdinas mentais para confrontar os outros sem correr o risco de serem confrontados.
Hoje me alegro por aquele menino que só conseguiu escrever uma carta anônima na terceira tentativa e que, ainda assim, não conseguiu realmente permanecer anônimo. No final daquele ano, a menina do aparelho dentário GG finalmente o tirou e ficou ainda mais bonita do que já era. E, na festa de fim de ano, já de partida para outro lugar qualquer, me levou pelas mãos para um local afastado da escola e me deu um longo beijo. E despontou para o anonimato me deixando excelentes lembranças de um tempo de escola que carecia justamente de lembranças excelentes. E sim, como se diz, aquela menina, de alguma forma, moldou o meu caráter. Mas a coragem, confesso, fiquei devendo pelo resto da adolescência.

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