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Disco do Ano - Bruce Springsteen - The River (1980)

"- Isto é brega americano!".
Foi assim, em poucas palavras, que um amigo fulminou todo o meu entusiasmo ao apresentar-lhe o álbum duplo daquele cantor magricela e de voz rouca, recheado de rockões e baladas, como, aliás deveria ser todo bom disco de rock. 


E, de fato, ele estava certo. A faixa que o fez decretar a pieguice explícita daquele par de LPs, e que batiza o disco, "The River", tinha mesmo um ar melancólico e triste, típico das nossas baladas românticas mais populares. A minha "vingança", por assim dizer, é que aquelas canções do primeiro disco de Bruce Springsteen que ouvimos nas nossas vidas, ficariam em sua memória afetiva até os dias de hoje. E na minha também.

Corria o ano de 1981 e ainda faltavam, pelo menos, cinco anos para que Springsteen se destacasse entre os screamers do projeto We Are The World e alcançasse alguma relevância em terra-brasilis. Mais um ano e as meninas já estariam molhando as calcinhas por um "chefão" - como era chamado a essa altura -  bombado e bailando com fãs no clip da pop "Dancing In The Dark". Mas, naquele momento, para nós, ele era apenas um ilustre desconhecido ianque que teve um álbum duplo lançado no Brasil e que havíamos adquirido no saldo de uma loja de discos prestes a fechar.

Catequizei muita gente e os converti para a seita springsteeniana. Se queriam rocks pesadões, eu mostrava "Cadillac Ranch", se queriam rocks simples e diretos eu apresentava "Sherry Darling" e "Hungry Heart". E quem quisesse "brega americano" se satisfaria facilmente com canções emocionais como "Independence Day", "I Wanna Marry You" e a sintomática "The River".

Algum tempo depois, antes que Born In The USA chegasse ás lojas e o "chefão" virasse carne de vaca, tomei conhecimento da importância e da relevância do artista, que fora apresentado ao mundo sete anos antes como a "salvação do rock". Com o estouro mundial, a sua discografia foi relançada e eu pude degustar um pacote de álbuns irrepreensíveis, todos clássicos absolutos, mas nenhum antecipando aquilo que eu ouviria em "The River".

Álbuns duplos costumam ser cansativos e conter gordura  extra que, muitas vezes, poderia ser eliminada e transformá-los em excelentes discos simples. Não é o caso aqui. Não só o "The River" cabe perfeitamente no "modelito" duplo, como ainda lhe caberia mais uma faixa, "Held Up Without a Gun", retirada do setlist do LP de última hora por um Bruce Springsteen receoso de que ela não estaria no mesmo nível das outras (e, cá pra nós, não estava mesmo). De qualquer forma, em 2015, saiu uma caixa pirata contendo mais de 50 canções que, supostamente, teriam ficado de fora do disco duplo.

Curiosamente, "The River" não foi pensado em nenhum momento como um álbum duplo. Deveria conter apenas dez faixas e se chamar "The Ties That Blind", mas havia sobrado muita coisa boa e não aproveitada do igualmente excelente disco anterior, "Darkness In The Edge OI Town", aliada ao ritmo de produção de novas faixas para um disco seguinte. Ao final, Springsteen resolveu acatar o conselho do produtor Jon Landau e reunir tudo em um único lançamento, um ambicioso projeto duplo.


Poderia ter dado errado. Aliás, poderia ter dado muito errado. Poderia, por exemplo, soar confuso e sem direção, como o álbum triplo Sandinista! do Clash, criado basicamente sob o mesmo conceito do "nada se perde e tudo se aproveita" e lançado apenas dois meses depois. 

Mas, não deu, e "The River" se tornou o último exemplar de uma discografia irretocável. Dali em diante, a carreira do "big boss" tomaria outras direções, que lhe garantiriam definitivamente o status de popstar, mas o afastaria do punch e da credibilidade de working class hero dos seus primeiros lançamentos.

O lado A se inicia com "The Ties That Blind", rock poderoso com tinturas de Byrds e melodia forte. "Sherry Darling", um dos sete singles extraídos do disco, chegou a ganhar versão nacional dos Fevers  (olha o tal do brega americano aí...). "Jackson Cage" e "Two Hearts" complementam uma das melhores sequencias rock and roll de um disco, com o "alívio" vindo com a tocante balada "Independence Day".

Sobre "Hungry Heart", que abre o lado B,  cabe uma história curiosa: Joey Ramone, dos Ramones, havia pedido a Bruce que escrevesse uma canção para a sua banda e Springsteen a fez "sob medida": fácil de tocar, bem melódica e totalmente sessentista. Quando produziu uma demo para entregar a Joey, foi convencido pelo produtor Landau a não entregá-la e gravá-la ele mesmo. Fez bem, pois "Hungry Heart" garantiu ao chefão o primeiro top chart nas paradas americanas. "Out In The Streets" é rock vigoroso e pungente, mas é "Crush On You" e "You Can Look" que se destacam. Mais uma vez, uma balada, a singela "I Wanna Marry You", encerra o segundo lado.

"The River" é a primeira do "lado C", com uma introdução de gaita e cinco minutos de  pura poesia. "Point Blank" é introspectiva e densa, mas "Cadillac Ranch" transforma tudo em diversão novamente, sendo seguida por "I'm a Rocker". "Fade Away" e "Stolen Car" são baladas menores que não comprometem em absolutamente nada a qualidade do disco. O quarto e último lado tem "Ramrod", um rock riffado e nada rifado, a dylaniana "The Price You Pay", a climática "Drive All Night" e a soturna "Wreck On The Highway" completando esta verdadeira obra-prima que é "The River".

Nos lançamentos seguintes, Bruce Springsteen não retornaria ao hard folk dos primeiros discos, nem se aventuraria mais em rocks descompromissados e dançantes e baladas intensas e introspectivas, preferindo adoçar suas novas canções com doses de sacarina que, nem sempre, funcionaram muito bem. Por isto, "The River" é um disco único na carreira do Big Boss e permanece, até hoje, como um dos melhores discos dos anos 80.

Comentários

Igor Maxwel disse…
Na minha opinião, o melhor disco da carreira do "The Boss".

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