Esta é uma história sobre rock e amizade. Não importa muito se você nunca ouviu falar de Wilson Emídio. Certamente, se você gosta das duas ou de uma das coisas - rock e fazer amigos - , você vai gostar do que vai ler aqui.
Em 1984, eu tinha uma banda de rock chamada Censura Prévia. Ensaiávamos na sala de estar de minha casa, assim como os Talking Heads ensaiavam na sala de estar do David Byrne no início da carreira. Tanto que, ao ver aquelas fotos do disco duplo ao vivo da banda nova-iorquina, me remeto imediatamente àqueles tempos. E, por mais incrível que possa parecer, nós tínhamos duas fãs. Eram duas vizinhas que não perdiam um ensaio, sentadas no sofá enquanto se balançavam, fazendo coreografias, rindo muito e tomando refrigerante. Um dia elas resolveram criar um fã-clube para o nosso conjunto amador. Na verdade, elas mandaram uma carta para a revista Rock Stars, uma publicação de quinta categoria, mas baratinha e acessível aos quebrados financeiramente como nós.
Demorou alguns meses e o pequeno anúncio do fã-clube foi finalmente publicado. Eis que, alguns dias depois, recebemos nossa primeira - e única - carta de fã. Era de uma pessoa da nossa cidade e, nela, o remetente contava que era paulista, estava morando há pouco tempo em Feira de Santana e gostaria de conhecer outros roqueiros como ele. Deixava o telefone do vizinho para entrarmos em contato, se desejássemos, já que, naqueles tempos, telefone era uma coisa rara. Ligamos curiosos e marcamos para ele vir a um ensaio. Como combinado, o roqueiro paulista apareceu.
Era um rapaz magrinho, com um cabelo cumprido, enorme, meio encaracolado, que lhe dava a aparência de um poodle. A empatia entre nós foi imediata. Usava uma camiseta com a capa de disco de uma banda que nunca tínhamos ouvido falar - The Rods - com um desenho de um cachorro de três cabeças. Tal camiseta se tornaria uma marca registrada dele, já que a usava dia sim e dia também.
Depois do ensaio conversamos muito sobre rock, a vida em São Paulo, a vida na Bahia, e ficamos de devolver a visita, indo à sua casa para conhecer seus discos. Alguns dias depois fomos até lá, avaliar o arsenal fonográfico do rapaz. Havia muito heavy metal mas também tinha Kiss e Made In Brazil. Aliás, ele era fã de Ronnie James Dio, tanto que grafara seu nome na carta como Wilson M. Dio.
Mas, na casa de Wilson não havia apenas bons discos. Ele também tinha irmãs e eram bem bonitas. E, bem, éramos todos adolescentes e solteiros. Tentei me engraçar logo com uma delas e, salvo algum delírio juvenil, achei também que ela simpatizara comigo. Essa nova amizade com o paulista iria render.
Wilson foi assistir mais um ensaio e, desta vez, conheceu minha mãe. Minha genitora o cumprimentou mas ficou com a pulga atrás da orelha. Quem é esse menino cabeludo, com sotaque diferente e conversador? Cismada, me fez levá-la até a casa do rapaz. Foi muito bem recebida pelos pais dele, conversou horas com seu Etelvino - que fez questão de, com muito bom humor, associar seu nome à Etelvina de "Acertei no Milhar" - que a tratou com enorme simpatia. Ao final, ela pediu desculpas, disse que viu que Wilson era mesmo um menino direito e seu Etelvino até a agradeceu e disse que ela estava certa em se preocupar. Porém, minhas chances com a irmã de Wilson foram definitivamente pelo ralo. Ou alguma menina iria mesmo querer alguma coisa com um rapagão de 16 anos que a mãe visita o amigo para saber quem é?
Devidamente qualificado na Polícia Maternal, Wilson se tornou o xodó de minha mãe. Se eu fosse mulher, certamente ela iria querer ele para genro. Quase todo sábado ela fazia alguma coisa diferente na cozinha e mandava eu chamar Wilson para provar, achando que em São Paulo ninguém comia ou se comia, era alguma coisa de outro planeta. Certo dia, ele almoçou conosco e perguntou o que era aquilo tão gostoso que estava saboreando. Minha mãe não se fez de rogada e disse que era testículo de boi. Wilson fez uma cara de assustado mas continuou comendo. Comendo e rindo muito enquanto comia, dizendo: - "É ovo de boi mas é gostoso".
A amizade com Wilson rendeu até uma música, da qual lembro partes da letra e da melodia. Por muitos anos, ele foi o único parceiro musical que tive. No ano seguinte, voltou para São Paulo e seguimos nos comunicando por carta até o início da década de 90 quando nos perdemos de vista em um tempo sem internet para facilitar o contato.
Em 93, estando em São Paulo, fui até o seu bairro e, na sua rua, sem o endereço certo, o procurei. Uma senhora me atendeu e disse que ele agora estava morando no interior. Estes anos todos eu passei tentando achar o meu amigo Wilson Emídio nas redes sociais, sem sucesso. Até que soube que havia uma amiga em comum entre eu e ele e ela sabia do seu paradeiro. Recentemente a procurei para ter notícias do meu saudoso amigo roqueiro e tive a pior notícia possível. Ele havia falecido em 2018, vítima de um súbito AVC.
Dei a notícia aos meus ex-colegas de banda, que lamentaram muito e fizeram questão de ressaltar o grande ser humano e amigo que aquele menino cabeludo era. Descanse em paz, meu grande amigo. Quis tanto te rever e não consegui. Espero que um dia nos reencontremos em um lugar melhor, para falar de rock novamente, comermos comidas esquisitas e darmos aquelas risadas enormes e generosas dos velhos tempos. Minha mãe ainda não sabe da sua passagem. Não tive coragem de contar.
Comentários
Estou aos prantos.
Quanta generosidade nas palavras.
Quanto amor nesta narrativa.
Sou a irmã mais velha, rsrs.
Sei que de onde ele está, um sorriso lindo se forma, neste momento.
Um abraço, querido Renato.
Agora, teremos muitas chances para recordarmos e matarmos a saudade do menino cabeludo.
Sou sobrinho do Wilson Dio rsrs Um dia na casa dele, ele me apresentou Dio, um show do Iron e sabia todos os integrantes. Pensei " um dia vou saber os integrantes de uma banda de cór"
Hoje eu sei, mas nao tenho ele para conversarmos sobre isso, ou sobre eu achar o vocal do Dio sensasional, mas amar a voz do Rob Halford rsrsrsrs.
Saudações, meu amigo.