Queria evitar usar aqui a palavra millennial no seu sentido pejorativo mas é quase impossível. Millennial deveria ser apenas o adjetivo pelo qual chamamos aqueles nascidos entre o fim da década de 80 até a atualidade, mas passou a significar também aqueles que detêm - ou simplesmente toleram - um tenebroso comportamento. E mais, não se resume apenas aos nascidos de uns tempos para cá. A "millennialidade" tomou conta do planeta, agregou jovens senhores e senhores idosos, e com ela foi embora o bom senso, o diálogo, a convivência de ideias e ideais diferentes e sobrou apenas o confronto, a intolerância, o radicalismo. O que Luther King chamou magnificamente de "o silêncio dos bons". E são a estes "bons" que eu me dirijo agora, porque os radicais, sinceramente, já estão perdidos.
Não se trata de ensinar os valores morais corretos e básicos. Nisto meu neto estará muito bem assessorado pelos pais, um deles, óbvio, inclusive criado por mim mesmo. Sei que meu neto não será machista, não será homofóbico, não humilhará pessoas mais humildes, não será racista ou destratará idosos. Acredito sim que não jogará lixo no chão, não furará filas e não tirará vantagem dos mais ingênuos. Mas eu realmente temo pela dificuldade que ele possa a vir a ter em dialogar com quem pensa diferente dele.
O filósofo Luiz Felipe Pondé, ao ser entrevistado no programa Roda Viva, respondeu assim a uma jornalista que o interrogou sobre como ela faria para perdoar e conseguir passar o natal com o pai, que teria votado no candidato que representaria - em sua concepção - o oposto de tudo aquilo em que acredita:
- Política é a arte de dialogar com quem pensa diferente, com quem você não gosta ou com quem você até não gostaria que existisse.
Bingo. Política é tudo que as novas gerações não fazem enquanto pensam estar, de fato, fazendo política. O que fazem é apenas um exercício de fascismo, polarizando, insultando e guerreando com quem discordam, tentando calar a todo custo seu incômodo opositor.
Tentam impor seu ideal de mundo perfeito sem ceder uma vírgula a quem quer que seja, acreditando que eles mesmos - ou seus filhos - estarão seguros em uma sociedade totalitarista. Um lugar onde prevalecerá um pensamento único e uniforme e qualquer um que vislumbre o diálogo - não precisa nem ser o opositor de fato - já é tratado como o inimigo e merece ser desprezado. Alguém como eu, por exemplo.
Vejo que eu precisarei ensinar ao meu neto - claro, se isto me for permitido pelos pais que são soberanos em decidir o que ao filho deve ser ensinado - o diálogo, o amor ao bom debate - que é aquele em que um dos lados pode até se convencer a mudar ou ajustar a sua opinião - e a boa convivência com quem vier a pensar diferente dele. Inclusive eu mesmo. Infelizmente algo se perdeu na tradução naquilo que minha geração tentou passar aos seus filhos e hoje temos o fenômeno da tolerância seletiva à intolerância radical.
Radicais sempre existiram e radicais sempre atrasaram o desenvolvimento da humanidade. Radicais jamais conquistaram absolutamente nada. Nem a Ku Klux Klan nem a Nação do Islam conseguiram acabar com o povo judeu, embora supremacistas brancos e negros norte-americanos dividissem o mesmo desejo imoral. Nem Hitler nem Stálin tampouco conseguiram exterminar os semitas hebreus. Radicais sionistas, por sua vez, também não conseguiram ofertar paz ao seu povo em Israel nem os extremistas palestinos garantiram a paz aos que vivem no cinturão de fogo do Oriente Médio. Porque a radicais só interessa a cisão, o enfrentamento e o confronto. Radicais não querem sanar o problema porque eles se alimentam - quando não são parte - do problema. Ao contrário, querem fomentar a discórdia para garantirem privilégios que só a eles são dados e que nunca atingem a quem eles fingem representar.
Infelizmente, a semente da discórdia dos velhos radicais dos anos 60, banidos pelos hippies, pela popularização das filosofias orientais e pelas revoluções comportamentais daquela década, gerou frutos estranhos na geração de nossos filhos e, se não os conseguiu transformar em um deles, pelo menos conseguiu deles a tolerância à sua própria intolerância.
Assim, temos a tolerância ao racismo de reação dos radicais do movimento negro. Temos a tolerância aos apelos por ditadura dos radicais simpatizantes do regime militar. Aceitamos a intolerância religiosa dos radicais cristãos aos ateus e afrorreligiosos e o seu inverso. Fechamos os olhos ao radicalismo dos ultra conservadores que classificam qualquer reclamação feminina contra o comportamento dos homens como mimimi e vitimização, e o comportamento das radicais feministas que promovem o ódio aos homens. E há homens e mulheres equilibradas que aprenderam a achar tudo isto absolutamente natural. Eles dizem que é apenas reação. Reação à opressão de séculos, reação à falência do modelo democrático, reação ao machismo patriarcal ou ao feminismo nazista. Mas esta reação, um belo dia, inevitavelmente se voltará contra eles mesmos e o pior, contra os seus filhos e netos.
Por isto que eu pretendo viver ainda mais algumas décadas para me assegurar que poderei ensinar ao meu neto, e aos netos que ainda vierem, o poder do diálogo e do entendimento. Não quero que ele confronte violentamente nenhum tipo de radical pois isto iria exatamente contra o que prego. Além do mais, radicais não precisam de confronto violento, de combate fogo com fogo e sim de serem expostos e devidamente ridicularizados, ao contrário do que acontece hoje, onde se costuma "passar pano" para os seus perigosos devaneios.
A geração de hoje relativiza o preconceito, a violência, a opressão e o ódio apenas porque os sinais aparentemente se inverteram. O que antes era ruim agora é bom porque os protagonistas supostamente trocaram de lado. Generais do passado agora são santos de vitral porque aqueles que os antagonizavam chegaram ao poder e falharam. Eugenistas de hoje estão certos porque trocaram de lugar com os eugenistas do passado. E assim caminha a humanidade. Para o buraco, evidentemente.
Sendo eu fruto da geração que viu Stevie Wonder cantar Ebony & Ivory junto com Paul McCartney, sendo eu fruto da geração que viu a revolução sexual, a emancipação feminina, a luta de Martin Luther King pelos direitos civis, a renúncia de Mandela à luta armada pela pacificação de seu país, eu não posso concordar com o retrocesso do enfrentamento violento e do discordar por discordar. Elizabeth Eckford não se tornou a primeira negra a frequentar uma escola de brancos confrontando os seus colegas com insultos, atentados e manifestações de preconceito reativo contra eles. Ela simplesmente lutou pelo seu direito de frequentar aquela escola e, contra tudo e todos, a frequentou. Ray Charles e os Beatles se negaram a se apresentar para plateias segregadas nos EUA e o sistema de separação racial nos espetáculos ruiu. Negros norte-americanos se negaram a utilizar o sistema de ônibus de suas cidades e a segregação no transporte público acabou. Artistas pop fizeram tanto barulho contra o apartheid na África do Sul que a discriminação chancelada pelo estado teve fim. Nada disto foi conquistado com ódio, violência, preconceito e radicalismo.
Enfim, se eu pudesse dar um conselho a quem tem hoje metade da minha idade e acredita que tem o dobro da minha experiência, que sabe de tudo e de tudo já viu, eu diria que buscassem urgentemente o diálogo com o diferente e evitassem o confronto pelo confronto. Os velhos radicais estão muito felizes por ver que suas sementes da discórdia finalmente deram frutos. Cuidado com o tipo de mundo fracionado, egoísta e intolerante que vocês irão deixar para os seus netos. E que seus filhos possam retomar o diálogo antes que retrocedamos ao início do século XX, ou até mesmo à idade média, ainda que seja com alguns sinais trocados.
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