Eu tenho um amigo muito querido a quem costumo saudar sempre que o encontro. Ele é completamente diferente de mim mas nossa sinergia é de muito tempo atrás, quando ele se encantou com uma música que eu havia tocado em uma mesa de bar. Nos tornamos amigos até hoje. Ele é negro, eu sou branco. Ele é bem mais velho que eu. Ele é magro, no estilo natureba. Eu sou gordinho tipo químico industrializado. E, sim, ele cultiva longos dreadlocks, hoje grisalhos, enquanto eu raspo, dia sim, dia não, a minha lustrosa careca. Eu costumo passar despercebido pela rua, ele não. E não é porque ele é negro, não é porque ele é muito magro. A estranheza que ele causa nas pessoas é por conta do estilo de cabelo que escolheu para usar, aliado à sua idade avançada. Ele é diferente, ele sabe que é diferente e certamente sente um prazer quase que orgástico ao afrontar a sociedade com a sua aparência incomum. Ele não quer ser aceito, ele não quer ser igual a ninguém. O que ele quer, de fato, é incomodar quem o vê passar pela rua.
Quando eu era adolescente, eu também costumava causar estranheza e até mesmo repulsa nas pessoas mais velhas. Eu usava calça e camisa rasgadas, cabelo tipo moicano e nas festas espetava um alfinete na bochecha furando-a e fechando o colchete pelo lado de fora da boca. Algumas vezes andava assim pela rua, em plena luz do dia. Minha mãe se envergonhava de mim, seus amigos a alertavam que eu devia ser doido ou comunista e me criticavam duramente. Certa vez, ainda na década de 80, eu e os colegas da banda punk da qual fiz parte fomos seguidos de perto por seguranças ao entrar em um shopping da cidade. Éramos quatro jovens, todos vestidos de preto, cobertos de alfinetes, com roupas rasgadas e cabelos espetados e coloridos. E não fomos seguidos por sermos jovens, não fomos seguidos por sermos negros - até porque não éramos -, não fomos seguidos por estarmos em quatro. Fomos seguidos porque nossa aparência incomum oferecia, de alguma forma, algum perigo às pessoas naquele ambiente - ao menos na visão daqueles seguranças ou de quem os contratou. E sim, os clientes do shopping estranharam - e muito - o nosso peculiar visual.
Falando em dreadlocks, eles surgiram na Índia e na África e foram adotados pelos praticantes da religião rastafári na Jamaica, muito mais pela sua praticidade do que pelo seu aspecto. As pessoas que viam aqueles homens negros com cabelos longos e trançados costumavam observar que suas tranças tinham a aparência de uma "pasta medonha" (dread locks em inglês). Foi o reggae de Bob Marley, claro, mas também foi esta aparência incomum e desagradável aos olhos dos mais velhos e mais conservadores que popularizaram os dreadlocks entre os mais jovens. Jovens negros e brancos, inclusive. Isto, claro, em um tempo em que não se falava ainda em "apropriação cultural" e se sabia muito bem que os jovens se apropriaram da cultura rastafári e a cultura rastafári dos negros africanos e estes, por sua vez, dos ascetas indianos.
Usar o cabelo no estilo dreadlock hoje pode estar na moda, podem haver versões mais estilosas e de aparência estética mais agradável do penteado, mas o velho e bom dreadlock, aquele feito longe das cercanias do salão de beleza, este sempre será um sinal inequívoco de contestação ao sistema. Da mesma forma que os alfinetes, os moicanos, as camisetas, as pinturas faciais do metal e calças rasgadas, o dreadock real, não o de butique, ainda que também seja o símbolo de uma religião, é bem mais que um padrão estético. O dread é uma declaração de princípios para quem usa. E de guerra aos integrados ao sistema. Sem dúvida alguma, o dreadlock não é para os integrados, é para os apocalípticos.
Então não dá para se vestir todo de preto, pintar de negro em volta dos olhos, fazer corpse paint ou usar dreadlocks e sair por aí choramingando que todos estão olhando para você com olhares de reprovação. É claro que eles irão te censurar, é claro que eles irão te criticar. Os signos de rebeldia servem exatamente para isto. No dia em que um político usar dreads, corpse paint, spikes de headbanger nos braços e alfinetes pelo corpo ou qualquer coisa do tipo, tenham certeza: Nós perdemos e eles venceram.
Voltando ao meu amigo "ancião" e natureba dos longos dreadlocks grisalhos, ele simplesmente escolheu não se adequar ao sistema. E, de fato, não se adequou. Não se adequou e pagou o preço alto de se manter à margem da máquina. É por esta razão que não é comum vermos pessoas mais maduras usando signos típicos da rebeldia juvenil. É porque a tal rebeldia juvenil costuma passar e acabamos nos adequando ao velho sistema com quem tanto brigamos ao longo da vida e ao qual muitos de nós amamos fingir que odiamos.
E não adianta tentar virar um "velhinho batuta", antenado, moderninho, mas enroscado nas roldanas da engrenagem, pois corremos o sério risco de nos tornarmos uma mera caricatura de nós mesmos, como o jovem idoso Serguei foi depois que envelheceu ou como aquele personagem chamado "Jovem" de Chico Anísio. E depois que viramos uma figura bizarra para a maioria das outras pessoas, um ser que une vestimentas, pose e cabelos de jovens a um corpo de inequívocas características da maturidade, não adianta reclamar que te olham com reprovação. Porque todos os signos da rebeldia juvenil não são uma modinha, não são uma tentativa de parecer mais bonito ou descolado. Não é o autorama que compramos depois de velhos porque nossos pais não tiveram dinheiro para nos dar na infância.. O que vestimos ou usamos em nossos corpos define exatamente aquilo que somos. Pelo menos nas pessoas que não fingem ser o que não são.
A rebeldia, ainda mais a rebeldia na terceira idade, é um grito que se espalha, que te dilacera num campo de batalha, como naquela letra canalha de Walter Franco. Não é para quem não aguenta, não é para idoso metido a menino. É para fortes como os jovens contestadores e como os idosos jovens de espírito e ainda rebeldes como o meu velho amigo ancião dos dreadlocks grisalhos. O rebelde que soube envelhecer sem enferrujar, parafraseando a famosa canção de Neil Young. Velhos jovens como ele ainda sabem brincar com o sistema depois de tantos anos. Quem não sabe, que se tranque em seu apartamento e, definitivamente, não desça pro play pois sim, vai ralar o joelho e mamãe não vai passar aquele mertiolate que não arde mais. Quando eu crescer, mesmo que seja espiritualmente, eu quero ser igual a ele.
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