Todo dia de domingo eu desço uma ladeira rumo a um mercadinho que fica na parte mais pobre do bairro onde eu moro. No caminho há uma casa muito modesta, provavelmente de apenas três cômodos, a sala/quarto em si e talvez um banheiro e uma cozinha.
A frente da casa é pintada de cal azul celeste, recurso de quem não tem dinheiro mesmo para comprar a tinta mais barata. Até onde eu consigo ver, há uma mesa bem simples e uma caixinha de som tipicamente chinesa, daquelas cheias de luzes e estridência, que está sempre ligada quando eu passo e tocando o melhor da MPB e do rock.
Na pequena casa, eu já percebi, mora um senhor esguio, negro e que, se o castigo dos anos não me enganar, deve estar na casa dos seus 65 anos. De lá de dentro, às vezes sai um peculiar odor de mato queimando, notadamente quando daquela caixinha sai algo oriundo das plagas jamaicanas.
A primeira vez que aquela casa me chamou a atenção estava tocando na caixinha de som uma canção do Black Sabbath que eu sequer conhecia. Me perguntei, com uma certa dose de preconceito, que diabos Ozzy Osbourne fazia ali, se esgoelando a todo volume, em plena área mais pobre de um bairro central da minha cidade. E como vivemos em uma sociedade plena de estereótipos, a visão de quem seria o ouvinte também me surpreendeu.
Todo mundo tem preconceitos e faz parte da minha pequena plêiade deles acreditar que gosto musical refinado é sinal de inteligência e nível cultural mais elevado. Não que eu não valorize os artistas populares. Eu simplesmente os amo. Ouço Evaldo Braga e Agnaldo Timóteo com o mesmo sentimento e paixão com que ouço Scott Walker e Al Green. Mas o refinamento destes últimos jamais estará presente na musica dos primeiros e é a percepção deste fato que me faz acreditar que ali, naquela casa pobre e despida de luxos, reside uma alma culta aprisionada em uma vida humilde e sem muitas perspectivas.
No meu mundo ideal, e aí vai mais um preconceito, pessoas musicalmente cultas jamais deveriam ser tão pobres materialmente falando. A cultura musical é uma verdadeira riqueza espiritual e deveria vir acompanhada de alguns pequenos e mínimos luxos como poder comprar uma boa bebida, ter uma tv tela grande para assistir os vídeos de seus artistas preferidos e um bom equipamento de som, não aquela caixinha ching-ling.
Provavelmente, aquele fã inesperado de boa MPB e rock pesado também lê, ou já leu. Eu adoraria me aproximar e conversar com ele, saber da sua história e perguntar sobre os livros que eu tenho certeza que ele leu e os artistas que já ouviu.
Um dia quando eu passar pela sua porta e ele estiver ouvindo algum rock doido e bem pesado eu vou me aproximar, desejar bom dia, puxar conversa e elogiar o seu ótimo gosto musical. Quem sabe eu consiga aprender alguma coisa a mais sobre música, arte e vida com ele.
(Na foto, o ator Ron Cephas Jones, caracterizado como o personagem William, da série "This Is Us")
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