Na mitologia grega, Eurídice era uma bela ninfa pela qual Orfeu desceu às profundezas do mundo inferior à sua procura. Lá, Orfeu convenceu Hades, o deus dos mortos e governante do lugar, a permitir que ele levasse Eurídice de volta para a Terra. A condição imposta por Hades é que Orfeu não olhasse para a amada até que chegasse em casa. Orfeu não conseguiu resistir, desobedeceu Hades e Euridice voltou para o inferno.
Na minha mitologia, Eurídice não era uma ninfa, pelo contrário, era uma mulher mais velha. Também não era bela. Era muito branca , da cor de uma folha de papel, e ainda era dona de grossas lentes por conta de uma miopia severa. Euridice foi o nome da minha primeiríssima paixão, ainda no raiar da puberdade, aos 13 anos. Foi aquela por quem o coração acelerou pela primeira vez ainda que aparentemente faltassem motivos para tal.
Eu era um aluno do ensino fundamental e ela, um tanto atrasada para a sua idade, também estava na mesma classe que a minha. Eu cultivava aquela paixão pela menina moça míope com os olhos de alguém que, por enxergar demais, via nela atributos que ela não tinha e acabava não enxergando mais nada. Nunca havia trocado uma única palavra sequer com Euridice. Tudo se resumia à minha estranheza diante de sua beleza completamente incomum. Ou da ausência dela.
Como eu não me dei conta que aquele meu primeiro amor também era o meu primeiro amor impossível? Ainda assim, eu resolvi me declarar à minha musa. A coragem que me faltou, um colega tratou de arranjar me trancando em uma sala do colégio com ela.
Preso na sala com Euridice, coração saindo pela boca, recebi um sorriso que julguei ser de aprovação, antecipação do bem bom que estaria por vir. Respirei fundo, fechei os olhos e balbuciei o primeiro "eu te amo" da minha vida imaginando que seria fatalmente correspondido. Mas como o leitor e a leitora já sabem, Eurídice disse não.
E não foi um não qualquer. Não foi um não piedoso, amoroso, lisonjeado de ternura pelo rapazote que ali se declarava. Foi um não bem seco acompanhado de uma dose cavalar de "não estou interessada". O meu amigo desistiu de segurar a porta quando me viu seguir em direção a ele, me afastando da amada que ficara no meu inferno escolar particular.
- Não deu certo, né? Ele me perguntou. Não. Nem um pouco.
Aquela menina mais velha foi, ao mesmo tempo, o meu primeiro amor e minha primeira decepção amorosa. Foi a minha primeira declaração e também o meu primeiro não. Eu me recuperei quase que instantaneamente da rejeição de Euridice pois meninos de 13 anos não sofrem por amor, mas aquele não mudaria para sempre a forma com que eu me relacionaria com as outras mulheres.
Dali em diante, passei a temer todos os nãos que poderia vir a receber. Deixei de namorar outras colegas na mesma escola, a maioria muito mais interessantes que Euridice, pelo simples medo de receber a negativa mortal.
Todos os meus relacionamentos posteriores foram marcados pelo fato de esperar que minhas pretendentes demonstrassem um razoável interesse em mim antes que eu resolvesse cortejá-las. E tudo por conta daquele não dito naquela sala de aula, ainda na minha imberbe puberdade.
Nunca mais vi Eurídice novamente. Aliás, não. Um certo dia, quase 30 anos depois, a avistei em uma barraca de churrasquinhos mordendo freneticamente um pedaço de carne com a boca suja de farofa. Continuava feia, continuava míope, continuava até mesmo branca demais para uma pessoa branca. Eurídice não me reconheceu mas eu lembrei daquele dia em que eu olhei para ela e a musa retornou para Hades levando para sempre parte da minha coragem juvenil.
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