Eu sempre tive sonhos bastante lúcidos e bem vívidos, a maioria deles multicoloridos, de paletas muito estouradas. E também já consegui, em algumas situações, até mesmo ter algum controle sob o que sonhava. Eu percebia que era um sonho e deixava rolar, me divertindo sabendo que todos aqueles absurdos que aconteciam ali eram apenas fruto da minha imaginação. Em outras, eu forçava o acordar para me livrar daquele incômodo momentâneo que estava vivendo. Mas isto que eu estava sonhando era tão surreal que não sabia se queria acordar ou permitir que continuasse.
Me vi despertando de manhã, na mesma casa onde já havia morado quando ainda era adolescente, 40 anos atrás. Pôsteres do The Police e do Kiss na parede, o velho armário de madeira herdado da tia avó e a escrivaninha onde repousava a minha ainda pequena coleção de discos e a minha já velha vitrola.
Levantei da cama e fui até a escrivaninha, repassar com os dedos estranhamente mais jovens os meus primeiros discos e estavam todos ali: Joan Armatrading, Rick Wakeman, Dire Straits, The Byrds, Donna Summer, The Motels...Todos cuidadosamente empilhados como os costumava deixar. Liguei a luz verde bem acima da minha cabeça - que usava para "dar um clima" enquanto ouvia música - e, de repente, olhei para trás e vi minha mãe, bem mais nova, me chamando irritada para atender o telefone.
Era o meu melhor amigo e colega de banda, reclamando da minha ausência para ajudar a arrumar os instrumentos para o show do final da tarde em um subúrbio da cidade. Uau, até nisto o sonho era fidedigno. Lembro perfeitamente daquele dia. Fiquei em pé em frente ao espelho enorme que havia na sala e penteei os cabelos. Só então me dei conta que ainda tinha cabelos e que mantinha, no sonho, a mesma aparência do menino magrelo e empenado do início da adolescência.
Perplexo pela perfeição de detalhes e do realismo daquele devaneio, me dirigi à casa do amigo, do outro lado da cidade. Tudo estava tão verossímil que era difícil acreditar que estava mesmo dentro de um sonho. De lá, fomos até o tal subúrbio, onde tocamos, e na volta, dentro do ônibus, igualzinho como acontecera anos antes, uma bela menina veio sentada no meu colo.
Ora, eu pensei: Naquela época, por completa timidez, eu não fui em frente e não lhe roubei um beijo. E agora, em sonho, o que me impediria? Então, para minha surpresa, foi ela que me agarrou e me beijou demoradamente.
Tá bom, este sonho já durou demais, é hora de acordar. Usei todos os recursos que aprendi controlando os meus sonhos e nada aconteceu. Me belisquei, gritei, me sacudi e continuei ali, sonhando que ainda tinha 14 anos, uma banda de punk rock, uma menina no meu colo e vivendo na mesma casa com meus pais.
Só então me dou conta que aquilo tudo não era um sonho. De alguma forma, eu havia voltado mesmo no tempo. Eu bem que desconfiara pois era tudo muito real para ser fruto da minha imaginação. E foi assim que eu percebi que estava preso naquele tempo e que, aparentemente, teria que viver tudo de novo, desta vez já sabendo o que iria acontecer.
Vivi intensamente o romance com aquela menina até que ela, finalmente, como já havia acontecido antes, partiu de volta para a sua terra, exatamente 3 anos depois. Ao contrário da outra vida, nosso namoro púbere atravessara as nossas adolescências. Foi uma despedida sofrida mas seguimos nossas vidas, trocando ainda algumas cartas encharcadas de saudades. Sempre tivemos a certeza que aquela história de amor estava definitivamente encerrada e que seríamos apenas uma bela lembrança na vida um do outro.
Entrei para a faculdade que já sabia que iria cursar, casei com a mulher com quem eu já sabia que iria casar e até me separei e casei novamente com a mesma mulher com que vivi até aquele dia em que fui dormir e acordei quarenta anos antes. Foi muito bom não cometer todos os erros que cometi naquelas outras quatro décadas. Eu já sabia quais eram e o que fazer para não errar de novo.
Cheguei finalmente à noite anterior em que, 40 anos antes, fui dormir para, do nada, acordar no passado. Deitei na cama na expectativa de não saber o que iria realmente acontecer comigo. Será que eu voltaria novamente ao passado em um loop infinito? Ou acordaria de manhã para seguir em frente, agora de volta ao futuro, ou melhor, ao presente? Para minha surpresa, acordei como se nada, absolutamente nada, tivesse acontecido e tudo tivesse sido mesmo um sonho. Um sonho com 4 décadas de duração.
Resolvo fuçar as redes sociais em busca daquele amor adolescente, afinal foi nas redes sociais que a encontrei da outra vez. Torço para que neste universo paralelo em que estou vivendo há tanto tempo, ela não seja mais a mulher fria e desiludida que havia se tornado e com a qual tivera contato muitos anos depois, ainda naquela outra vida. E para minha surpresa, a ex-namorada adolescente continuava jovial. Continuava doce e gentil, exatamente como quando a conheci. Eu também já não era mais o mesmo homem de antes daquela estranha viagem no tempo. Conhecer e poder ter evitado a maior parte dos meus erros me fez um homem muito melhor.
Trocamos fotos dos filhos, falamos de nossos amores atuais, de como foi nossa vida distante um do outro e foi então que ela me contou que, recentemente, algo muito estranho lhe havia acontecido. Tinha ido dormir poucos dias atrás e acordara novamente menina e pôde viver, de novo, tudo que já havia vivido e, inclusive, consertado algumas coisas. E que tinha lembranças completamente diferentes agora do que aquelas que tivera antes. E tudo começou com um beijo que roubou de mim na poltrona de um ônibus. Achou que eu a julgaria louca.
A tranquilizei afirmando que a mesmíssima coisa havia acontecido comigo. Não sabíamos explicar nada do que ocorrera conosco. Não sabíamos o porque daquele surreal retorno no tempo e o porque destas vidas duplas e repetidas que vivemos em 4 décadas literalmente vividas duas vezes. E escolhemos não buscar explicações. O que importava mesmo é que nesta outra vida éramos mais felizes que antes, ainda que, em ambas, tenhamos permanecido separados. E tudo por conta de um beijo roubado que reescreveu a nossa história como em um espetacular efeito borboleta.
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