Em 1989, bem por acaso, chegou em minhas mãos um curioso filme chamado "Eles Vivem" (no original "They Live"). Com apenas 23 anos, pai recente, confesso que eu apenas assisti a um filme de ficção científica meio tosco, divertido, com algumas falas engraçadas e uma cena de luta que é considerada uma das mais demoradas da história do cinema. E, depois, esqueci.
Quando adquiri um vídeo cassete, dois anos depois, e já pequeno comerciante, pude rever a fita e, aí sim, comecei a vê-la com outros olhos. No conforto de minha casa, com os recursos de "wind" e "rewind" mais a possibilidade de assistir ao filme duas ou três vezes (o que realmente fiz) pude captar, entender e apreciar todas as mensagens subliminares que há naquela película.
Muitas pessoas mais ideologicamente à esquerda costumam acreditar que há ali uma crítica ferrenha ao capitalismo e sim, elas estão certas. Mas o que elas talvez não percebam é que a crítica feita ao capitalismo é também uma crítica igualmente poderosa aos regimes socialistas, já que o que o filme afirma o tempo todo que, o que se acredita que seja uma sociedade livre, na verdade é um mundo tão escravizado quanto aquele ao qual o liberalismo e a economia aberta pretende antagonizar.
Muito tempo depois, já em 2015, me chegou às mãos um estranho documentário norte-coreano chamado "Propaganda". Supostamente produzido na Coréia do Norte, a peça destrói qualquer possibilidade de crença de que vivemos aqui no Ocidente em um mundo com liberdade. No fundo, somos tão prisioneiros quanto o povo daquele país, é a conclusão à que chega o filme. Algum tempo depois, como eu desconfiei, soube que a sua origem era neozelandesa e seu autor, o cineasta Slavko Martinov, um crítico atroz do consumismo e da cultura da ostentação e do desperdício.
Os dois filmes, juntos, me abriram a cabeça de uma forma irreversível. Ainda que eu demorasse a aceitar, percebi que não há comunismo e capitalismo, esquerda e direita. Tudo isto não passa de distração. Há o estado em suas múltiplas formas de controle. E fazemos parte deste jogo, como bonecos comandados por controle remoto, acreditando que somos livres enquanto o outro é prisioneiro. Sim, somos todos prisioneiros. Nós e eles.
A diferença que pode existir entre uns prisioneiros e outros, seja lá ou aqui, é a consciência. Enquanto uns se dão conta que esquerda e direita são apenas dois lados da mesma moeda, outros fazem o jogo do sistema, escolhendo um lado para achar que tudo aquilo é certo enquanto o outro lado é completamente errado. No final, todos servem o estado, até mesmo os conscientes. Como no filme Matrix, onde não há muito a se fazer com o conhecimento sobre o mecanismo além de aceitá-lo e se acomodar a ele.
Vejo muitas pessoas de esquerda criticar a figura do "pobre de direita". Como se a pessoa pobre tivesse mesmo que necessariamente ser a favor de temas complexos encampados pela esquerda como a liberação das drogas, o casamento homossexual, a descriminalização do aborto, o desarmamento da população ou o desencarceramento de presidiários. Mas, esquece-se disto tudo e foca-se a crítica no fato de que a direita seria uma ideologia de ricos enquanto a esquerda seria o seu contrário, uma ideologia de pobres. Da mesma forma, critica-se, do outro lado, a figura do "anarquista de esquerda". Como se pode ser radicalmente contra aquilo a que pedimos a presença cada vez mais e mais?. Mas o "pobre de direita" e o "anarquista de esquerda" são apenas dois cegos servindo ao estado acreditando de verdade que estão combatendo a estrutura.
E é aí que começa a distorção imposta pelo sistema. Todos os governantes que afirmam serem socialistas são muito ricos. Os governantes ditos democráticos ou liberais também são. Seja em um ou outro regime, o povo é sempre a parte pobre da pirâmide que sustenta os mais abastados. Há governos socialistas e liberais que amenizaram esta desigualdade, mas nenhum a solucionou. Simplesmente por não haver solução.
O que separa um pobre de direita de um pobre de esquerda ou um anarquista de esquerda de um estatista comum é absolutamente nada. Fora as pontuais crenças a respeito de como a sociedade deve funcionar, normalmente bastante radicais e exclusivas, ambos são extremamente dependentes do estado que os oprime. E, não apenas dependentes, cada um a seu modo, são entusiastas da presença do estado em suas vidas. São tão cegos quanto os humanos de "Eles Vivem" que não notam a presença dos extraterrestres misturados a eles, minando-lhes o próprio ar, ou quanto os consumidores do que absolutamente não precisam descritos no filme "Propaganda".
O imperador romano Calígula, tido como louco, certa vez, vendo o estado paralisado pelas eternas discussões entre o lado esquerdo e o lado direito do senado, nomeou seu cavalo Incitatus como senador - ele tinha o direito de indicar senadores por lei - e o posicionou ao centro. As pessoas lúcidas, que já saíram da Matrix e percebem todas as artimanhas do sistema para mantê-los escravizados e e prisioneiros, são como uma versão consciente do Incitatus. Estão ali mas nada, ou quase nada, podem fazer, a não ser, como eu, manifestar a sua profunda descrença no estado como protetor ou mantenedor.
Os que se tornam conscientes, ou combatem o estado ferozmente sem estabelecer alternativas, como no caso dos anarco-capitalistas, ou simplesmente se alienam e não escolhem lado entre políticos e política, tendo a clara consciência de que o único interesse de todos os políticos é controlar o indivíduo da mesma forma que os estados totalitários controlam os seus cidadãos. Lá, como aqui, vende-se a ilusão de que somos todos livres quando, na verdade, somos todos manipulados e não passamos de peças de xadrez - peões. Servimos reis e rainhas a quem chamamos de mito ou de almas honestas, para sermos extorquidos e os carregarmos nos ombros enquanto brigamos com nossos amigos.
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