Vários Artistas - "HITSVILLE USA" - (1995) Nos doze anos que correspondem à sua "era de ouro", a gravadora Motown, de Detroit, (Detroit era conhecida como a "Motor Town", daí o nome) deixou uma marca indelével na música pop dos anos 60. Influenciou artistas de soul de outras regiões norte americanas e roqueiros do mundo inteiro, que muitas vezes ouviam um clássico do selo na voz de um Mick Jagger ou um Paul McCartney e nem faziam ideia do que estavam ouvindo.
O "som da motown" foi forjado em um pequeno estúdio, e o segredo era terrivelmente simples: Todos os artistas eram acompanhados pela mesmíssima banda de apoio, com algumas variações na formação, conhecida como "funk brothers". Assim, o baixo, que desenhava por si só uma outra melodia em vez de simplesmente fazer a base - a característica maior do motorsound - estava presente em todas as faixas produzidas pela gravadora, dando a "liga" de todas as faixas.
A luta dos negros americanos pelos direitos civis e a grande liberdade que os afrodescendentes do norte dos EUA desfrutavam em comparação aos que moravam no sul foram essenciais, não só para o surgimento da Motown, como da música pop como a conhecemos. Na Motown, os negros falavam de amor, de alegria de viver e de sexo .Sem grandes preocupações com questões políticas, a Motown inventou a música assobiável. Sem Motown, os Beatles seriam mais um grupo de rock invocado tocando canções grosseiras alusivas à sexo e nunca teriam feito coisas como She Loves You e I Wanna Hold Your Hand. Os Stones seriam um grupo de blues tradicional e nunca nos dariam Under My Thumb (que, por sinal, é um simpático plágio de "It's The Same Old Song" dos Four Tops) ou mesmo Satisfaction. Absolutamente tudo que foi gravado em termos de rock depois de 1959, traz a influência direta da sonoridade daquela gravadora. Sem Motown, hoje provavelmente nem ouviríamos rock no Brasil e a música nos EUA ainda seria segmentada, dividida entre brancos e negros.
Não adianta ficar aqui fazendo maiores explanações sobre os 104 singles que compõem esta caixa. São todos imperdíveis, mas, é claro, o filé está nos dois primeiros discos, que cobrem de 59 a 65. Mesmo assim, no terceiro disco, encontra-se alguns dos grandes clássicos da música universal lançados pela gravadora americana. O quarto disco, embora essencial, já entrega um certo cansaço da fórmula, e uma maior independência dos artistas, como Marvin Gaye, que passam a fazer um trabalho menos rígido na forma mas ainda impecável na qualidade. Ah, você ouve (escreva aqui seu estilo preferido de música pop e/ou rock) e não se interessa por esse som de preto? Abra os olhos. Seu artista preferido eu tenho certeza que se interessa.
Demônios da Garoa - "Trem das Onze" (1964) - Pode parecer muito estranho falar, em um site sobre cultura pop, de um grupo regional de samba. Mas não é, absolutamente, um grupo qualquer. E, no mais, samba também é cultura pop. Trata-se dos Demônios da Garoa, que já se destacariam apenas por serem o mais antigo grupo musical em atividade no mundo. Fundado em 1943, os Demônios da Garoa se tornaram a voz, o corpo e alma de um mestre, verdadeiro gênio, do samba e da MPB, o paulista Adoniran Barbosa.
Nos Estados Unidos, lendas mortas do bluegrass - uma espécie de avô do rock and roll - como Leadbelly e Woody Guthrie, são reverenciadas pelas gerações mais novas, e pelas antigas também. Tudo bem que a cultura rock no Brasil, assim como no resto do mundo que não é Estados Unidos, não tem e não poderia ter raízes profundas na música local; mas não dá para simplesmente dissociar gente como Caetano Veloso, Gilberto Gil e até mesmo Chico Buarque, do rock feito no Brasil. E não dá para fazer de conta que Adoniran, e por tabela, os Demônios, não têm a mínima importância para o pop nacional.
Em um cenário onde prevalecia o ufanismo barato da Era Vargas e a exaltação à branquitude do povo brasileiro, Adoniran surgiu desconcertando, cantando em português errado a pobreza de quem não tinha onde morar. Adoniran exaltava o romantismo brejeiro do namorado que não podia perder o último trem para o bairro distante onde morava, e até mesmo a irritação bem-humorada com o amigo tratante que marca e não fica pra receber a visita. O resultado é a invenção da linguagem urbana na música dita "jovem", ou seja, a gênese do rock and roll. Para efeito de comparação, a falta de uma linguagem similar no período pré-rock and roll em um país como a Itália - onde a canção romântica sempre foi a tônica - artistas como Peppino Di Capri dividiam seus discos entre a balada napolitana e o rock cru de rockers como Chuck Berry e Little Richard.
Além de serem o grupo porta-voz de Adoniran Barbosa, os Demônios da Garoa eram (e são, porque ainda estão na ativa com o mesmo humor e alegria) extremamente irreverentes, como na politicamente incorreta A Promessa do Jacó onde um comerciante judeu é impiedosamente trollado por ser avarento. Ou em outra canção, onde tiram sarro de um japonês acusado de vender pastéis de vento. Na sua imensa discografia, têm, pelo menos, um grande clássico, o disco Trem das Onze, um dos primeiros LPs lançados no Brasil, ainda em 1964.
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