Pular para o conteúdo principal

EDUCAÇÃO ARTÍSTICA - SONHANDO OS SONHOS DO EVERCLEAR.

O fato de ter cortado relações - musicalmente falando - com a década de 90, ainda em seu amanhecer, fez com que eu deixasse de ouvir muita coisa chata e barulhenta vinda da terra do Tio Sam, ou de algumas outras terras, coisas igualmente chatas e modorrentas, oriundas notadamente da terra da Rainha. Mas tamanho radicalismo em não querer ouvir nada que tivesse sido produzido nestes anos fez com que eu deixasse de conhecer mais cedo a banda que corre o risco de ser a melhor dos anos 90 e até mesmo da atualidade.

Eu fiz questão de grifar a frase para evitar polêmicas inúteis. Tudo bem se você acha o Oasis, os Strokes, o Xiu Xiu ou qualquer outra coisa, a melhor banda do mundo. Perdoe-me, eu acho isto do Everclear. É isto mesmo que você leu. O power-trio do Oregon já há algum tempo vem me conquistando a cada lançamento, e, de mais a mais, posso acompanhar o crescimento da banda em tempo real, agora, já. Seu mentor intelectual e líder da banda, é o filho de imigrantes gregos Art Alexakis, de 42 anos de idade em 2003. Quando o Everclear lançou seu primeiro disco, em 1993, o guitarrista já havia passado dos 30, acabara de se divorciar em um processo penoso que resultaria em dois dos melhores discos já produzidos e não tinha mais nenhum deslumbramento com o show-business.

Ao mesmo tempo, a massa sonora característica de suas canções denunciava justamente o contrário. Que no seu coração de homem maduro ainda morava um adolescente, louco pra fazer o maior barulho possível. Já os temas de suas músicas eram surpreendentemente adultos e lúcidos. Em Wonderful, faixa do brilhante "Songs From An American Movie", Art questiona a instabilidade familiar vista pelo olhar das crianças de forma tão crua e dura que todos os pais deveriam ler a letra da canção para, talvez assim, pouparem-nas de futuros traumas. Traumas que, inclusive, ele tem. No belíssimo clip desta música, a câmera o flagra de olhos marejados, visivelmente emocionado. Com uma vida recheada de traumas e pequenas e grandes tragédias (seus pais se separaram quando ele tinha cinco anos e seu irmão mais velho morreu de overdose de heroína, sendo que ele próprio, já foi um viciado), Alexakis é um letrista quase do tamanho de um Dylan ou de um Cohen. E se ele faz hard-rock em vez de folk music, melhor.

Assim chegamos ao disco "Slow Motion Daydream", de 2003, seu último trabalho, o mais recente até este ano. Começamos pelo título, que já entrega muita coisa. "Sonhando acordado em câmera lenta" é, de fato, o mais "sonhador" dos álbuns da banda. Livre das consequências de sua separação, com os demônios interiores devidamente exorcizados, de contas acertadas com o way-of-life americano, o que restaria ao artista? Produzir um disco carregado nas tintas, "quase" ensolarado, bem "sonhador" (daí o título), com direito até a faixa-secreta alegrinha e limpinha. Não que a essência do texto de Art Alexakis ou as características do som do Everclear tenham se diluído neste (não tão) novo disco. Muito pelo contrário, está tudo lá. O que mudou é que a visão de mundo do artista não está mais tão amarga quanto antes. Art está enxergando tudo da mesma forma, só que com muito mais humor. E a "pauleira" típica do grupo ainda está (e como está, por sinal) muito presente. Assim como as delicadas construções harmônicas pop. Só que agora está tudo muito bem misturado, bem dosado, maduro enfim.

O humor quase negro de canções como "I Wanna Die In A Beautiful Day", a fina textura de "A Beautiful Life" ou o clima folk de "Volvo Driving Soccer Mom"; até a inevitável influência de Van Morrison está presente em "That Acid Summer". Como em todos os discos da banda, as músicas são dispostas como se contassem uma história, embora todas tenham luz própria. Enfim, para quem não gosta do Everclear, certamente este disco não dá razões para que passe a gostar. Para quem curte o som mezzo pesado mezzo pop do grupo, não faltam motivos para se deliciar com este álbum. 


E pra não dizer que tudo é divino-maravilhoso em "Slow Motion Daydream", alguns "truques" de discos anteriores podem ser reconhecidos aqui e ali e podem dar munição aos detratores do grupo, que costumam dizer que o Everclear está sempre tocando a mesma música. Tudo bem, diziam isto dos Ramones e hoje sentimos a falta daquele disquinho anual "igualzinho" do quarteto nova-iorquino. Vá, Alexakis, faça ainda uns dez "Slow Motion Day Dream" antes da sua bela morte, e que permaneçamos vivos para ouvi-los. Em câmera lenta. (Publicado originalmente em 2004).




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A CARTA ANÔNIMA

 Quando eu era menino, ainda ginasiano, lá pela sexta série, a professora resolveu fazer uma dinâmica bastante estranha. Naquele tempo ainda não tinha esse nome mas acho que ela quis mesmo fazer uma dinâmica, visto pelas lentes dos dias atuais. Ela pediu que cada aluno escrevesse uma carta anônima, romântica, se declarando para uma outra pessoa.  Eu confesso que não tive a brilhante ideia de escrever uma carta anônima para mim mesmo e assim acabei sem receber nenhuma carta falando sobre os meus maravilhosos dotes físicos e intelectuais. Já um outro garoto, bonitão, recebeu quase todas as cartas das meninas da sala. E sabe-se lá se não recebeu nenhuma carta vinda de algum colega do sexo masculino, escrita dentro de algum armário virtual. Eu, é claro, escrevi a minha carta para uma menina branca que nem papel, de óculos de graus enormes e um aparelho dentário que mais parecia um bridão de cavalos. Ela era muito tímida e recatada, havia nascido no norte europeu mas já morava...

Porque não existem filas preferenciais nos EUA.

Entrei em contato com um amigo norte-americano que morou por muitos anos no Brasil e o questionei sobre a razão de não haver filas preferenciais nas lojas norte-americanas. Ele me respondeu que não havia apenas uma mas várias razões. Uma delas é legal, porque é anticonstitucional. A enxutíssima constituição dos Estados Unidos simplesmente proíbe que determinado grupo social tenha algum direito específico sobre outro. Ou todos têm ou ninguém tem. Então, lhe questionei sobre as ações afirmativas na área de educação. Ele me respondeu que as ações afirmativas seriam constitucionais porque serviriam justamente para nivelar um grupo social em desigualdade aos outros. O que não seria, segindo ele, o caso de gestantes, idosos e deficientes físicos. A segunda razão seria lógica e até mesmo logística: Uma fila preferencial poderia ser mais lenta do que a fila normal e acabar transformando um pretenso benefício em desvantagem. Isto abriria espaço para ações judiciais no país das ações judic...

O SONHO

  Oi. Hoje eu sonhei contigo. Aliás, contigo não. Eu sonhei mesmo foi comigo. Comigo sim, porque o sonho era meu, mas também com você, porque você não era uma mera coadjuvante. Você era a outra metade dos meus anseios juvenis que, quase sexagenário que sou, jamais se concretizaram. Não que a falta de tais anseios me faça infeliz. Não faz. Apenas os troquei por outros, talvez mais relevantes, talvez não. Hoje de madrugada, durante o sonho, eu voltava a ter 20 anos e você devia ter uns 17 ou 18. Eu estava de volta à tua casa, recebido por você em uma antessala completamente vazia e toda branca. Branca era a parede, branco era o teto, branco era o chão. Eu chegava de surpresa, vindo de muito longe. Me arrependia e queria ir embora. Você  queria que eu ficasse, queria tirar minha roupa ali mesmo, queria que eu estivesse à vontade ou talvez quisesse algo mais. Talvez? Eu era um boboca mesmo. Você era uma menina bem assanhadinha, tinha os hormônios à flor da pele e eu era a sortuda ...