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TOQUEM GIGLIOLA CINQUETTI NO MEU ENTERRO!

     Engraçado. Todo esse papo de "Vive le rock!", "Punk's not dead", "Oi!Oi!Oi!" (será que o new romantic não deveria também ter tido um grito de guerra? algo tipo "baton!rímel!blush!") e qual a música que eu gostaria que tocasse em meu enterro?  Não, não é "Jesus is Dead" do Exploited, muito menos "Pretty Vacant" dos Sex Pistols. "Stay Free" do Clash? "Love Will Tears Us Apart" do Joy Division? Poderia ser muito apropriadamente "Under The Floor Again" do Damned, mas é nada menos que uma canção italiana dos anos 60, "Non Ho L'ettá",  interpretada pela deliciosa pin-up italiana Gigliola Cinquetti

   Não me comparem com o vocalista do Husker Du ou com Frank Black. Eu, particularmente, até acredito em punk gay, mas não é o meu caso. Nada contra os gays, muito menos contra os punks, mas não dá pra imaginar um cara com uma alma plenamente feminina fazendo  de verdade música com excesso de testosterona.  A não ser que este cara seja uma mulher.

     Mas porque Gigliola Cinquetti? Vamos lá: Em 1976, aos dez anos, eu já ouvia música e para desgosto de quem pensava que eu estava antenado com o que acontecia lá fora (ou aqui dentro) em termos de rock, uma surpresa: Eu, além de ouvir os discos de jovem guarda de minha mãe, ouvia o que era divulgado na mídia naquele tempo.  Muita, mas muita disco music. Além do que, eu poderia ter tido pai roqueiro, mãe roqueira, que, ainda assim, ouviria a mesma disco music que ouvia. Aos dez anos, absorvemos com muita pureza as informações que chegam até nós.

    Em Feira de Santana, a cidade onde eu nasci, na segunda metade da década de 70, haviam dois cinemas, e aos dez,  eu nunca havia entrado em um.  Para meu desvirginamento cinematográfico, escolhi o Cine Íris a comédia romântica italiana Dio Come Ti Amo. Não tive muitas opções. No outro cinema estava passando um filme para maiores de dezoito. Para meu azar, o filme carcamano era preto e branco, mas tudo bem. Encantado com a telona, fiquei para a segunda sessão. Sem pagar um novo ingresso naturalmente. Duas sessões.
 
O Cine-Íris, que não existe mais.
     Na minha mente infantil era inconcebível que um cinema passasse dois dias seguidos o mesmo filme.  No dia seguinte,  para minha surpresa,  o filme italiano continuava em cartaz. Tudo bem, deixa pra lá, vou ver de novo.  Mais duas sessões. Já havia assistido, então, quatro vezes o tal filminho.  Quando é que sai de cartaz?  Quarta? Tudo bem.  O próximo filme é de aventura e é a cores! Na quarta, eu me dirigi ao cine teatro, ávido para ver meu primeiro filme "in color". Surpresa! Dio Come Ti Amo permanecia em cartaz.  Mais outras duas sessões.  Seis ao total. Quando comprei um vídeo cassete,  aluguei e assisti em casa.  Mais duas vezes, pelo menos. Era o vício. Oito sessões.  

     O filme é sofrível. Tem um ritmo até ágil,  mas um enredo capenga,  feito sob medida para promover a deliciosa Gigliola, então  (em 66, quando foi feito o filme) no auge da fama.  Era quase um vídeo-clip de longa duração e em 16mm.  Mas uma cena, a de abertura,  pelo menos essa,  era inesquecível. A linda Gigliola,  entre amigas,  no clube de natação,  cantando,  com um ar nada  angustiado, contrariando o teor da letra, a  épica   "Non Ho L'ettá" (não tenho idade). 

     Sei lá porque esta cena me marcou.  Talvez fosse a única música e a única cena que prestasse no filme inteiro. E a canção, era  realmente belíssima e ficou guardada na memória afetiva. Hoje, além de minha preferida do repertório da moça,  é uma das que mais gosto e - supremo agrado aos meus ouvidos -  volta e meia sou acordado pelo meu rádio relógio por esta música, executada na rádio local, logo pela manhã.  Então, toquem Gigliola Cinquetti no meu enterro.  Mas não errem de música, pois eu não sou muito fã de Dio Come Ti Amo e volto pra puxar o pé de todo mundo.
     (Publicado originalmente em Março de 1989)


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