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Dogmas tecnofascistas.

Em 1982, Marcelo Nova, o então cantor e letrista do grupo baiano Camisa de Vênus,  previu, com mais de duas décadas de antecedência, o fenômeno das redes sociais, particularmente o facebook e o portento da dogmatização da frivolidade. A música se chama "Dogmas Tecnofascistas" e eu sempre a citava como uma das poucas músicas da banda com um texto que eu considerava menor, aparentemente incoerente e não segmentado, como não costumavam ser as letras do grupo no início da carreira. A canção, como o nome diz, trata de fascismo tecnológico, e ouvida hoje em dia, ganha um assombroso e insuspeito sentido. Percebam:

"Entrou e ficou impressionado
Com essa porcaria aí do seu lado
Ela vai fazer sua vida completa
O homem de sucesso atinge sua meta
Tudo tão legal, de se admirar
Tudo alto astral
Acho que vou... vomitar!

Novos dogmas são planejados
Velhos anseios são adaptados
O tecnofascista mostra o caminho
"Siga a matilha ou vai morrer sozinho"

Tudo tão legal, de se admirar
Tudo alto astral
Acho que vou... vomitar!

Já temos tudo que não leva a nada
Temos inteligência pré-fabricada
Se sua vida estragar um dia
Pode trocar, que tá na garantia

Tudo tão legal, de se admirar
Tudo alto astral
Acho que vou... vomitar!

Um dos versos que mais me chamam a atenção nesta nova leitura feita por mim de "Dogmas tecnofascistas" é "Tudo tão legal, de se admirar". Teria o bardo soteropolitano visionado os futuros "likes", tão desejados, e a necessidade visceral do novo ser humano tecnológico de ser aceito?  "Siga a matilha ou vá viver sozinho". Hoje, quem não está conectado à internet, e ainda que esteja, não tenha um perfil em uma rede social, parece mesmo estar condenado a "morrer sozinho".

Os novos dogmas, verdadeiramente, na era das redes sociais, apenas escondem a adaptação aos velhos anseios. E que frase seria mais contundente para definir, mais de trinta anos atrás, o que viria a ser a socialização em rede do que esta? "Se sua vida estragar um dia, pode trocar que está na garantia".

Talvez eu até esteja forçando demais ao associar a primeira palavra da canção, "entrou" ao ato de logar no facebook ou em outra rede social qualquer. Mas "esta porcaria aí do seu lado", de fato torna a nossa vida "mais completa", ainda que este "completar" seja tão monotônico quanto a meta do "homem de sucesso" que queremos parecer e quanto os poucos acordes desta profética canção.



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