Nem bem o cadáver do cantor, compositor e guitarrista gaúcho Flávio Basso esfriou no túmulo e já apareceram as primeiras manifestações proto-feministas de repúdio às letras sexistas da fase inicial da banda que o projetou, os Cascavelletes. Curiosamente, tais letras estão aí, rodando pela internet desde que a internet existe, já que são anteriores à própria web, e nunca, enquanto Júpiter Maçã (o outro nome artístico de Basso) esteve vivo, ninguém quis questionar o conteúdo delas. Mas o ativismo oportunista já percebeu que se trata de uma excelente chance de, mais uma vez, causar polêmica oca, e se prepara para o linchamento moral de uma pessoa que não está mais aqui para se defender.
As letras machistas da fase inicial dos Cascavelletes sequer chegaram a ser gravadas oficialmente. Figuram em um tape que sempre rodou de forma pirata pelas mãos dos fãs. À época, Flávio Basso e Nei Van Sória, respectivamente vocalista e guitarrista da banda TNT, saíram do grupo porque os outros integrantes não concordavam com as novas letras, bem mais explícitas, que os dois músicos estavam compondo. As músicas que não seriam aceitas para fazer parte do repertório do TNT seriam "O dotadão deve morrer" e "Morte por tesão". Então, formaram outra banda, os Cascavelletes, e pesaram a mão nas letras, que tinham títulos como a citada "Eu quero te estuprar", "Minissaia sem calcinha" e "Menstruada".
Apesar do enorme sucesso que eles fizeram naquele momento, a percepção de que não dava para conseguir um contrato com uma grande gravadora com aquele tipo de letra foi clara. Quando gravaram o primeiro disco, um ano depois, o grupo já estava bem mais comportado - ou bem menos mal comportado - e as letras já não eram tão explícitas e sexistas. Não custa nada lembrar que, estávamos no final da década de 80, ainda não havia o conceito disseminado do politicamente correto e as músicas ainda podiam trazer referências que hoje seriam consideradas inadequadas.
Jupiter Maçã está sendo vítima, depois de morto, do ativismo fake. Absolutamente nada contra o ativismo produtivo. Aliás, sem ativistas, provavelmente, ainda estaríamos na idade da pedra e os conceitos de civilidade e moral atuais sequer teriam sido traçados. E todo ativismo é necessário, ainda que, nem sempre, seja pelas causas certas. O feminismo é o tipo de ativismo essencial, ainda que, vez ou outra, prime pelo excesso. Mas, os excessos são necessários para que, uma vez percebidos, a própria sociedade acerte o seu prumo. Daí que não há porque se combater o feminismo como algo danoso, devendo mesmo ser apoiado. Mas, o que se vê aqui é ativismo de sofá da pior espécie.
Que a letra de "Eu quero te estuprar" é de um profundo mau gosto, isto já sabíamos desde 1988. Que é completamente desnecessária e não contribui em nada para uma sociedade menos injusta e mais igualitária, já sabemos também. Mas não confundam uma canção perdida nos confins do rock nacional oitentista com a obra de um artista que jamais se comprometeu com posicionamentos machistas no amadurecer de sua carreira. Ataquem os verdadeiros inimigos do feminismo. Batendo em quem já está está morto apenas dá a entender que dos machistas muito vivos as feministas têm medo. E mulher que é mulher, não tem medo de ninguém.
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