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O espírito doutrinador.

Eu estou aqui para contar a vocês, que ainda estão vivos, como é "o outro lado". Revelar para todas as pessoas o que acontece após a morte. E o que tenho a dizer, certamente não agradará a todos, mas  trata-se da mais pura e cristalina verdade. Não quero enganar ninguém, nem pretendo me arvorar a mestre de coisa alguma.

Ao contrário do que muitos imaginam, assim que morremos, não nos transportamos para nenhum lugar, seja este lugar o purgatório, o céu e o inferno. Muito menos deixamos de existir, como querem alguns descrentes. Até porque, se assim fosse, eu não estaria aqui para contar-lhes nada.

Quando morremos, literalmente "travamos" no último acontecimento que antecedeu à nossa morte. Comigo, por exemplo, a passagem - passagem não é a melhor palavra para designar o que me aconteceu - ocorreu após reagir a um assalto. Era noite, início de madrugada e eu tivera que parar em uma avenida erma para trocar um pneu furado. Um homem se aproximou me perguntando se queria ajuda e eu disse que sim, um tanto aliviado. Mas aquele homem não queria me ajudar, ele pretendia me assaltar. Tentei-lhe tomar a arma, mas não consegui. Levei dois tiros fatais no peito, morri ali mesmo, mas não foi isto que a minha mente registrou. Não foi assim que o meu cérebro "travou".

Quando levei os dois tiros que ceifaram a minha vida, pensei em minha mãe. Por um átimo de segundo, imaginei seu sofrimento ao saber que morri e desejei que ela estivesse ali, comigo, em meu último lampejo de vida. Mas ela não estava e morri, ali mesmo, estatelado no asfalto, ensanguentado e com os olhos fixos no céu e nas estrelas, que foram as últimas imagens que captei, enquanto ainda respirava.

Para a minha mente, naquele momento eu estava com o carro parado em uma rua deserta, arrumando material do meu trabalho, com a minha mãe ao meu lado, me ajudando. Então veio aquele homem e nos ameaçou se não entregássemos tudo que tínhamos. Minha mãe entrou no carro - ela não dirige -  e assumiu a direção, fugindo, enquanto, eu, do branco de trás, pedia-lhe que fosse mais rápido, para escapar do homem que nos ameaçara.

Só que a cada esquina que avançávamos, ali estava o homem nos apontando uma arma. E era sempre a mesma sensação de terror, o medo de ser alvejado e o alívio de ter conseguido escapar, para, na outra esquina, me ver novamente sob a ameaça de uma arma. Isto durou anos. A avenida jamais acabava, o homem nunca nos acertava um tiro, mas estava ali, a postos, por todas as esquina por que passávamos, para tentar nos matar.

E foi assim durante anos. Na verdade, eu não sei dizer se foram anos, décadas, séculos ou mesmo apenas alguns dias ou algumas horas. Não havia como ter uma noção do tempo que passei "travado" naqueles acontecimentos que se repetiam. Sei que a sensação de estar ali era horrível demais. 

Até que um dia, acordei em um túnel, como se fosse uma ponte sobre algum lugar. A aparência cilíndrica, o piso que tremulava aos meus pés, a luz que vinha de adiante, tudo indicava se tratar de uma espécie de ponte sobre um desfiladeiro ou algo assim. Parecia que um tipo de tecido envolvia a tal ponte, mas não havia como furá-lo e ver o que estava do outro lado, Não sei mensurar o tempo em que andei por aquela ponte que lembrava um cano por dentro, sem chegar a  nenhum lugar.

Até que, um dia, ouvi vozes. E percebi que , se tentasse me comunicar com elas, eu seria ouvido. Foi assim que entrei em contato com vocês, que, aparentemente, ainda estão vivos. Não sei onde estou, continuo naquela ponte cilíndrica e sempre percebo uma luz à minha frente, mas nunca chego a lugar algum. Estou muito cansado. Não sinto fome, não sinto nenhuma dor, mas não há nenhuma paz aqui onde estou. Pelo menos, é melhor do que aquela roda-viva em que estive, vivendo e revivendo uma cena em que meu assassino sempre tentava me acertar. 

Nada tenho a ensinar a vocês. Imagino que outros espíritos na mesma situação em que estou, se arvorem a ministradores de ensinamentos para passar o tempo e se distrair pela eternidade afora. Não é o meu caso. Não sei o que dizer, não tenho uma palavra de consolo para falar a ninguém. Só sei que preferia estar vivo. Maldita hora em que parei para trocar aquele pneu.

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