Pular para o conteúdo principal

A heterofobia de Freddie Mercury

Em primeiro lugar, deixo claro, heterofobia não existe. Não há indícios de preconceito que justifique o uso corrente do termo, além de um heterossexual não ser bem aceito em uma roda de conversa formado por homossexuais. Dito isto, vamos lembrar que, a rigor, fobia é medo e aqui vamos falar exatamente do medo de ser heterossexual de Freddie Mercury.


Portanto, se você chegou até aqui esperando que eu discernisse sobre algum tipo de preconceito do cantor contra heterossexuais, pode dar meia volta. Do que falo aqui é de como o vocalista do Queen, ao longo dos anos, lidou mal com a sua bissexualidade e de como tentam hoje em dia  reconstruir a sua história para transformar  Mercury em ícone gay e representante do movimento LGBT+. Deixando claro, também, que eu não vejo absolutamente nada demais em haver representantes do universo LGBT§ na sociedade. Porém, escolher um artista que nunca soube lidar com sua própria orientação sexual não me parece exatamente o mais apropriado para quem quer significar a liberdade de ser homossexual.

Escrevo estas linhas logo após assistir o documentário da Netflix sobre a associação entre o Queen e o cantor Adam Lambert, revelado em um programa de TV, o "American Idol". Lambert é uma daquelas figuras que definitivamente nasceram na época errada. Tivesse nascido trinta anos antes, seria um dos grandes - talvez até mesmo o maior - vocalistas do rock. Talvez até tivesse tomado de fato a vaga do próprio Freddie Mercury no Queen. Porém, como nasceu em 1982, Adam Lambert é fruto de uma geração que esvazia sua criatividade em uma música pop banal e modorrenta. Seus discos solo são de uma enorme nulidade. Apenas à frente do que sobrou do Queen é que podemos notar seu enorme  - mastodôntico - talento.

Se alguém é digno de representar o movimento LGBT+ é Adam Lambert. Desde Boy George, a música pop não via um astro tão assumida e alegremente gay. Também foi o primeiro artista gay a alcançar o primeiro lugar nas paradas de seu país logo após o lançamentyo do disco. Mas não é Lambert o tema deste texto e sim seu antecessor, Freddie Mercury.


Em primeiro lugar, é interessante ressaltar que Farrokh Bulsara, o nome real do artista, não era um inglês nato. Nascido em Zanzibar, na região de ilhas orientais da costa da África, de cultura mais próxima a da Índia, foi criado em um ambiente extremamente conservador e religioso.  Em 1970 casou-se com a namorada de adolescência Mary Austin, com quem permaneceria unido até 1976. Apesar de amar muito sua esposa, Mercury sentia uma enorme culpa por se atrair por homens.  E foi justamente a sua dificuldade de lidar com a bissexualidade que fez ele se separar dela e preferir ser apenas homossexual. Quem assistiu à cinebiografia da banda fica com a nítida impressão de que quem realmente se importava com o fato do cantor gostar de homens era ele e não ela.

É relativamente fácil entender a cabeça de Freddie Mercury. O artista era um conservador na essência para quem a possibilidade de alguém gostar tanto de mulheres quanto de homens era extremamente conflitante. Gostar de mulheres era o certo, gostar de homens seria um pecado mas gostar de homens e mulheres beirava a aberração para ele. E apesar de viver nos loucos anos 70, onde o glam rock imperava e ser um homem feminino não feria o lado masculino de ninguém, a educação conservadora e religiosa do cantor do Queen se sobrepunha à liberdade com que se expressava musicalmente. De fato, Freddie Mercury sempre viveu dividido entre o arquétipo masculino de "We Are The Champions" e o hedonismo abertamente gay de "Body Language".

Para Mary, Freddie compôs as suas canções mais apaixonadas. De "Love Of My Life" a "Save Me". Aliás, "Save Me", a belíssima canção do disco The Game, já desclassificaria Mercury ao título de representante do mundo gay. Nela, o cantor pede que a sua ex-esposa o salve. Salvar do que, exatamente? Da vida que escolheu viver, a de homossexual assumido..

Não que Freddie Mercury não tenha nenhuma importância para o movimento gay Muito pelo contrário. O vocalista do Queen exerceu uma "militância" homossexual legitimamente orgãnica. Usava roupas de couro, se apresentava apenas com shortinhos e definitivamente cravou seu nome, como aliás o fez em todas as áreas, entre os mais talentosos homossexuais da música pop. Tanto que, se comparado a Mercury, Adam Lambert soa processado demais.

Talvez até o próprio Freddie Mercury tenha nascido na época errada. Fosse hoje, encararia com muito mais naturalidade o fato de ser bissexual. Lidaria melhor com a sua orientação sexual e  talvez até trouxesse algum frescor à musica pop de plástico de hoje em dia. Talvez até conseguisse viver com o amor de sua vida, por quem jamais deixou de ser apaixonado Apesar de conviver com o parceiro Jim Hutton de 1986 até a sua morte, foi para Mary Austin que ele deixou a maior parte de sua fortuna.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A CARTA ANÔNIMA

 Quando eu era menino, ainda ginasiano, lá pela sexta série, a professora resolveu fazer uma dinâmica bastante estranha. Naquele tempo ainda não tinha esse nome mas acho que ela quis mesmo fazer uma dinâmica, visto pelas lentes dos dias atuais. Ela pediu que cada aluno escrevesse uma carta anônima, romântica, se declarando para uma outra pessoa.  Eu confesso que não tive a brilhante ideia de escrever uma carta anônima para mim mesmo e assim acabei sem receber nenhuma carta falando sobre os meus maravilhosos dotes físicos e intelectuais. Já um outro garoto, bonitão, recebeu quase todas as cartas das meninas da sala. E sabe-se lá se não recebeu nenhuma carta vinda de algum colega do sexo masculino, escrita dentro de algum armário virtual. Eu, é claro, escrevi a minha carta para uma menina branca que nem papel, de óculos de graus enormes e um aparelho dentário que mais parecia um bridão de cavalos. Ela era muito tímida e recatada, havia nascido no norte europeu mas já morava...

O SONHO

  Oi. Hoje eu sonhei contigo. Aliás, contigo não. Eu sonhei mesmo foi comigo. Comigo sim, porque o sonho era meu, mas também com você, porque você não era uma mera coadjuvante. Você era a outra metade dos meus anseios juvenis que, quase sexagenário que sou, jamais se concretizaram. Não que a falta de tais anseios me faça infeliz. Não faz. Apenas os troquei por outros, talvez mais relevantes, talvez não. Hoje de madrugada, durante o sonho, eu voltava a ter 20 anos e você devia ter uns 17 ou 18. Eu estava de volta à tua casa, recebido por você em uma antessala completamente vazia e toda branca. Branca era a parede, branco era o teto, branco era o chão. Eu chegava de surpresa, vindo de muito longe. Me arrependia e queria ir embora. Você  queria que eu ficasse, queria tirar minha roupa ali mesmo, queria que eu estivesse à vontade ou talvez quisesse algo mais. Talvez? Eu era um boboca mesmo. Você era uma menina bem assanhadinha, tinha os hormônios à flor da pele e eu era a sortuda ...

Porque não existem filas preferenciais nos EUA.

Entrei em contato com um amigo norte-americano que morou por muitos anos no Brasil e o questionei sobre a razão de não haver filas preferenciais nas lojas norte-americanas. Ele me respondeu que não havia apenas uma mas várias razões. Uma delas é legal, porque é anticonstitucional. A enxutíssima constituição dos Estados Unidos simplesmente proíbe que determinado grupo social tenha algum direito específico sobre outro. Ou todos têm ou ninguém tem. Então, lhe questionei sobre as ações afirmativas na área de educação. Ele me respondeu que as ações afirmativas seriam constitucionais porque serviriam justamente para nivelar um grupo social em desigualdade aos outros. O que não seria, segindo ele, o caso de gestantes, idosos e deficientes físicos. A segunda razão seria lógica e até mesmo logística: Uma fila preferencial poderia ser mais lenta do que a fila normal e acabar transformando um pretenso benefício em desvantagem. Isto abriria espaço para ações judiciais no país das ações judic...