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A era do assassinato de reputações.

Um dia surgiu um líder político como nunca havia existido antes. Era vegetariano, não fumava e  nem bebia.  Nas  reuniões ministeriais não permitia que ninguém fumasse, isto em um tempo em que o hábito de fumar era quase obrigatório. Sentia um profundo amor pelos animais, tratava sua cadela de estimação como se fosse uma filha. Era sensível, amava a música erudita (se deliciava com as sinfonias de Wagner) e também as artes plásticas. Era ele mesmo um pintor, ainda que medíocre. Lia um livro por noite apesar das suas enormes tarefas. Era culto. Sua biblioteca tinha mais de 16 mil livros e seu escritor preferido era Shakespeare. Gostava de cinema. Era fã de Charles Chaplin. Tão fã que passou a usar o bigode do personagem Carlitos.

Era também fiel à sua companheira com quem fez questão de casar antes de morrer.  Dizia se sentir à vontade entre pessoas humildes pois fora ele mesmo um morador de rua. Quando sofreu um atentado  escapou ileso mas visitou um ferido a quem não permitiu que o saudasse formalmente pela culpa que sentia em ver um homem agonizando em um hospital por terem tentado lhe matar.

Tão bons sentimentos, tão nobre em suas ações e seu nome era Adolf  Hitler.  Sim, aquele mesmo que matou impiedosamente, pelo menos, seis milhões de inocentes. Aquele que mandou famílias inteiras  para os fornos de cremação. Aquele que autorizou experiências científicas monstruosas com crianças e idosos. Aquele que matou homossexuais e comunistas. Aquele que sacrificou deficientes físicos pela pureza da raça. 

Não se deve medir com a régua dos dias de hoje o caráter das personalidades do passado, gente que viveu em outra época e realidade. O resultado, como pode se ver,  pode ser desastroso. Corremos o risco de acreditar que Hitler, o exemplo citado, era um homem que ele definitivamente não foi.

Vivemos hoje a era do assassinato de reputações. Assim, Monteiro Lobato é julgado não por ter criado personagens negros adorados pelas crianças como a terna Tia Anastácia, a negra do colo quente decantado pelo também negro Dorival Caymmi, ou o sábio preto velho Tio Barnabé. Muito menos pelas causas que defendeu como a da exploração do petróleo em um tempo em que se falar de petróleo no Brasil soava como piada. O escritor é julgado por ter simpatias pelo eugenismo, que tinha status de ciência em seu tempo e cujas teorias eram tão amplamente aceitas por aquela sociedade que eram aplicadas até em investigações policiais.

Da mesma forma, padecem hoje na mão dos infalíveis julgadores personalidades como Simone de Beauvoir, Jean Paul Sartre, John Lennon, Paul McCartney, Madre Tereza de Calcutá, Gandhi e até mesmo Jesus Cristo. Cada um com seu quinhão de atitudes que os novos moralistas julgam indefensáveis. Lennon é chamado de agressor de mulheres por ter dado um tapa na então namorada Cínthia, fato que é contado por ela em livro no qual ela também relata que ele se ajoelhou chorando e pediu perdão imediatamente. O ex-beatle também é duramente criticado por escrever uma letra falando da possibilidade de não haver propriedades privadas sendo ele dono de inúmeros imóveis ou por ter imitado um deficiente mental durante um show. 

A escritora e feminista Simone de Beauvoir é acusada de servir de cafetina de jovens meninas para o filósofo Jean Paul Sartre, que seria um pedófilo. Paul McCartney é julgado por colocar maconha nos bolsos dos filhos para passar pela revista em aeroportos. Madre Tereza é acusada de desviar dinheiro de doações por se preocupar mais com os seus doentes do que com seu contador. Gandhi é chamado de homossexual por, ao envelhecer, abandonar a esposa e ir viver com um discípulo, apesar de este ser justamente o costume de sua religião. Até Jesus não escapou da sanha dos moralistas por ter derrubado no chão os produtos dos vendilhões - pessoas humildes, dizem eles - na porta do templo.

Curiosamente, estes novos moralistas, estejam eles à esquerda ou á direita, costumam relativizar as más atitudes e contradições daqueles a quem veneram. Assim, Zumbi é perdoado por ser um suposto libertador dos negros da escravidão e ele mesmo ter escravos em seu quilombo. O Coronel Brilhante Ulstra é tido como libertador do Brasil do comunismo, apesar dele ter torturado mulheres grávidas. David Bowie é acusado de "macho escroto" por ter mantido, nos anos 70, na década das groupies e da liberação sexual,  relações sexuais com uma garota de 13 anos, enquanto Caetano Veloso é perdoado pelo mesmíssimo pecado. Da mesma forma, o contrário. David Bowie é justificado enquanto Caetano e chamado de pedófilo nas redes sociais.

Daqui a 100 anos, em 2122, talvez a sociedade do século XXII considere consumir carne um ato abominável e condenável, absolutamente inaceitável  Não seria justo que nenhum de nós, carnívoros de nosso tempo, fosse julgado não pelos nosso atos, não pelas nossas qualidades, não pela nossa contribuição ou pelas nossas conquistas, mas por algo que hoje é considerável normal e aceitável e não será mais naquele tempo.

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