Pular para o conteúdo principal

AQUELAS PESSOAS PESADAS.

Um dos primeiros discos que comprei na vida foi o The Kick Inside, o sensacional álbum de estreia da cantora Kate Bush, produzido pelo então guitarrista do Pink Floyd,  David Gilmour.  E, curiosamente, não foi por causa do mega hit Wuthering Heights, canção que, aliás,  segue sendo, ao longo de todos estes anos, uma das que menos me agrada do repertório da artista.

O disco The Kick Inside já foi até objeto de resenha neste mesmo blog,  portanto não é dele que eu quero falar e sim de uma canção específica contida nele chamada Them Heavy People. Na verdade, nem é mesmo dela e sim da mensagem que ela contém.

Them Heavy People significa, literalmente, "aquelas pessoas pesadas". Pesadas no sentido da convivência difícil, intranquila e pouco prazerosa. Pesadas no sentido da extrema negatividade que estas pessoas, às vezes, expressam. E a belíssima canção,  um reggae estilizado, uma absoluta novidade em 1977, quando foi composta durante uma visita de Bush á casa dos pais,  trata exatamente disto: De como pessoas pesadas podem ser úteis, e até mesmo essenciais,  para o nosso crescimento espiritual.

A letra da música cita Jesus e até mesmo o filósofo russo Gurdjieff, que afirmava que vivemos em um estado hipnótico e ilusório de eterna sonolência espiritual e que só acordamos de fato para compreender o que nos cerca quando despertamos deste sono. Mas é  nos ensinamentos do budismo que o texto essencialmente se baseia. Nas predições do Buda há o conceito da roda da vida e de como devemos sempre girá-la para não acumular carma negativo e evitar outras reencarnações,  o que nos levaria a mais e mais sofrimento. E na letra, a autora Kate Bush agradece às tais pessoas pesadas por ajudá-la a girar a sua própria roda da vida, facilitando assim o  seu crescimento espiritual.

Pessoas com uma alta carga de negatividade,  sempre dispostas a aproveitar qualquer pequena oportunidade de fazer da vida do próximo um inferno,  são muito mais do que seres infelizes que querem semear sua própria infelicidade.  São, em muitos momentos, verdadeiros vampiros emocionais,  sanguessugas da felicidade alheia, que transformam, em uma macabra fotossíntese,  o bom humor em mau humor, o estado de leveza alheio em stress e alegria de viver em raiva e decepção. A percepção que temos a princípio é que devemos nos afastar deste tipo de pessoas, exclui-las completamente de nossas vidas e combater fogo com fogo , lhes dizendo tudo que achamos delas e tudo que achamos que elas precisariam ouvir, antes de nos afastamos para sempre. Mas trata-se de um exercício inútil. Inútil e tão negativo quanto a própria negatividade delas.

O que devemos fazer com as pessoas pesadas é justamente encharca-las com nossa leveza. Leveza que só nós sabemos como conseguimos, a duras penas, já que também fomos pesados algum dia. É o exato significado do "dar a outra face" do ensinamento de Jesus que muitos confundem com a não reação e não  defesa a um ato de violência extrema. É mostrar às pessoas pesadas que ainda há muito mais paciência guardada para elas do que elas imaginam ser possível. E que, não só elas não conseguem nos contaminar como, ainda por cima, nos ajudam a criar bom carma e a crescer em espírito.

Como diz a letra, todo ser humano tem um céu interior. E o mais perfeito alimento para tal céu,  por mais contraditório que possa soar, é o inferno interior daqueles que ainda  não conhecem profundamente a si mesmos. Que estão envoltos naquilo que os budistas chamam de mara e os cristãos de perturbação demoníaca. Pelo menos, não se conhecem o suficiente para que percebam que o caminho da felicidade passa por este autoconhecimento e por saber a exata razão do seu sofrimento.

Mas é preciso bastante cuidado para não confundir as coisas. Não se trata absolutamente de adubar a infelicidade alheia para cultivar a nossa própria felicidade.  Trata-se apenas de não deixar enraizar em nós a erva-daninha da negatividade do outro. Desde que a pessoa pesada passe a ter consciência do seu peso espiritual e queira se livrar dele, pedindo nossa ajuda, é nossa obrigação e dever ajudá-la, até para que possamos retribuir o bem que ela nos fez indiretamente,  nos ajudando a girar a nossa roda da vida. Vai ser a hora de girar a roda da vida dela também. E é justamente isto que somos: Seres girando a nossa própria  roda da vida e a dos outros seres e aprendendo e crescendo sempre com nossos acertos, nossas falhas e as falhas e acertos alheios.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A CARTA ANÔNIMA

 Quando eu era menino, ainda ginasiano, lá pela sexta série, a professora resolveu fazer uma dinâmica bastante estranha. Naquele tempo ainda não tinha esse nome mas acho que ela quis mesmo fazer uma dinâmica, visto pelas lentes dos dias atuais. Ela pediu que cada aluno escrevesse uma carta anônima, romântica, se declarando para uma outra pessoa.  Eu confesso que não tive a brilhante ideia de escrever uma carta anônima para mim mesmo e assim acabei sem receber nenhuma carta falando sobre os meus maravilhosos dotes físicos e intelectuais. Já um outro garoto, bonitão, recebeu quase todas as cartas das meninas da sala. E sabe-se lá se não recebeu nenhuma carta vinda de algum colega do sexo masculino, escrita dentro de algum armário virtual. Eu, é claro, escrevi a minha carta para uma menina branca que nem papel, de óculos de graus enormes e um aparelho dentário que mais parecia um bridão de cavalos. Ela era muito tímida e recatada, havia nascido no norte europeu mas já morava...

O SONHO

  Oi. Hoje eu sonhei contigo. Aliás, contigo não. Eu sonhei mesmo foi comigo. Comigo sim, porque o sonho era meu, mas também com você, porque você não era uma mera coadjuvante. Você era a outra metade dos meus anseios juvenis que, quase sexagenário que sou, jamais se concretizaram. Não que a falta de tais anseios me faça infeliz. Não faz. Apenas os troquei por outros, talvez mais relevantes, talvez não. Hoje de madrugada, durante o sonho, eu voltava a ter 20 anos e você devia ter uns 17 ou 18. Eu estava de volta à tua casa, recebido por você em uma antessala completamente vazia e toda branca. Branca era a parede, branco era o teto, branco era o chão. Eu chegava de surpresa, vindo de muito longe. Me arrependia e queria ir embora. Você  queria que eu ficasse, queria tirar minha roupa ali mesmo, queria que eu estivesse à vontade ou talvez quisesse algo mais. Talvez? Eu era um boboca mesmo. Você era uma menina bem assanhadinha, tinha os hormônios à flor da pele e eu era a sortuda ...

Porque não existem filas preferenciais nos EUA.

Entrei em contato com um amigo norte-americano que morou por muitos anos no Brasil e o questionei sobre a razão de não haver filas preferenciais nas lojas norte-americanas. Ele me respondeu que não havia apenas uma mas várias razões. Uma delas é legal, porque é anticonstitucional. A enxutíssima constituição dos Estados Unidos simplesmente proíbe que determinado grupo social tenha algum direito específico sobre outro. Ou todos têm ou ninguém tem. Então, lhe questionei sobre as ações afirmativas na área de educação. Ele me respondeu que as ações afirmativas seriam constitucionais porque serviriam justamente para nivelar um grupo social em desigualdade aos outros. O que não seria, segindo ele, o caso de gestantes, idosos e deficientes físicos. A segunda razão seria lógica e até mesmo logística: Uma fila preferencial poderia ser mais lenta do que a fila normal e acabar transformando um pretenso benefício em desvantagem. Isto abriria espaço para ações judiciais no país das ações judic...