Pular para o conteúdo principal

A morte do camaleão.

David Bowie não era um gênio. Chamá-lo assim é como desperdiçar o termo duas vezes. Uma porque, ainda bem, ele não se enquadra na definição clássica de gênio. Um gênio se leva a sério e Bowie sempre soube rir e chorar de si mesmo o suficiente para fugir desta definição simplista. Duas porque, quando nos referimos a Bowie, é impossível não dizer que o músico  sempre foi um visionário. E é esta qualidade,  única e especial, que costuma ser sempre subestimada em prol dos confetes que sempre foram jogados nele a vida inteira.
  
David Robert Jones completou 69 anos no último dia 8 de janeiro. Exatamente dois dias depois, no dia 10, domingo, faleceu vitimado por um câncer contra o qual estava lutando havia mais de um ano e meio. Pegou o mundo inteiro de surpresa., como aliás, sempre foi a tônica da sua arte: Surpreender, chocar, fazer sorrir e chorar quase que ao mesmo tempo. E o ponto final da sua brilhante carreira não poderia ser diferente. Bowie planejou até o seu murmúrio final.

No início, David Bowie era apenas David Jones e estava predestinado a ser um novo Bob Dylan. Com  a originalíssima roupagem que deu à folk-music em seu primeiro disco, Bowie desconstruiu a canção popular norte-americana da forma mais ácida  e irreverente que poderia haver. Caminhava a passos largos para deixar sua marca neste estilo, quando passou uma temporada  na Nova York punk do início dos anos 70 e, simplesmente, desbundou. Sim, Bowie conheceu Lou Reed, Iggy Pop, Patti Smith e, principalmente, Jayne County, o travesti roqueiro que o tirou definitivamente do caminho de astro alternativo do folk para o de visionário das décadas seguintes. Bowie passou a ser aquele que, aparentemente, lançava as tendências, quando, na verdade, apenas se adiantava a elas.

David Bowie foi punk antes dos punks, glam antes dos glams, new wave antes dos new wavers e neo-romântico antes mesmo que Steve Strange pudesse dar o primeiro gemido à frente do seu Visage. No início dos anos 80 virou astro pop, podre de chic e nos noventa resolveu que seria um artista "normal". Ao mesmo tempo que re-embalava tudo aquilo que via e ouvia e achava relevante, lançando em seguida com a marca "Bowie", acabava, ele mesmo, transformando tudo e se tornando influenciador daquilo que antes lhe influenciara. E eis aí o seu maior mérito, muitíssimo mais importante do que ser chamado de gênio. Robert Fripp é um gênio, mas, no panteão dos deuses do rock, onde ficará Fripp quando morrer? Bem distante, muitos degraus abaixo do camaleão visionário, este muitíssimo mais charmoso e interessante do que o genial guitarrista do King Crimson.

Outro dia, li em um destes sites de música, daqueles que, literalmente, nasceram ontem, que o primeiro disco de David Bowie era "um dos piores discos de estréia de todos os tempos". Claro que li aquilo com um ar de "eu não precisava ter vivido para ler isto", mas não deixa de soar curioso como, justamente, o disco mais "puro" de  Bowie, onde sua criatividade estava à mil - vide a genial "Please, Mr. Gravedigger", uma canção em que o acompanhamento instrumental é feito de trovões, barulho de chuva e espirros - seja considerado, por neófitos, como uma das piores estreias do mundo do rock. É interessante perceber que, com o passar dos anos, o Bowie  de espírito original e genialmente criador deu lugar ao artista genialmente oportunista que mudou tanto de estilo - sem jamais perder a qualidade e a classe - que ficou conhecido como  "o camaleão do rock".

Ainda que discutir se David Bowie era genial, visionário ou ambos possa vir a ser substancial em estudos futuros de musicologia, neste momento, é completamente inútil. Pense-se o que quiser do artista, a relevância dele salta aos ouvidos do mais tacanho apreciador de música pop. A sua ausência é gritante, ainda que tenha passado calado a maior parte do século XXI. Mas, talvez, até no momento de exílio, Bowie tenha continuado a ser um visionário. Tendo percebido a mediocridade da música moderna, achou por bem se calar. Pena não ter tido seguidores desta vez.  Voltou à ativa nesta década com dois álbuns marcantes para encerrar com brilho intenso a sua trajetória na Terra. Neste exato momento, viaja de volta às estrelas.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A CARTA ANÔNIMA

 Quando eu era menino, ainda ginasiano, lá pela sexta série, a professora resolveu fazer uma dinâmica bastante estranha. Naquele tempo ainda não tinha esse nome mas acho que ela quis mesmo fazer uma dinâmica, visto pelas lentes dos dias atuais. Ela pediu que cada aluno escrevesse uma carta anônima, romântica, se declarando para uma outra pessoa.  Eu confesso que não tive a brilhante ideia de escrever uma carta anônima para mim mesmo e assim acabei sem receber nenhuma carta falando sobre os meus maravilhosos dotes físicos e intelectuais. Já um outro garoto, bonitão, recebeu quase todas as cartas das meninas da sala. E sabe-se lá se não recebeu nenhuma carta vinda de algum colega do sexo masculino, escrita dentro de algum armário virtual. Eu, é claro, escrevi a minha carta para uma menina branca que nem papel, de óculos de graus enormes e um aparelho dentário que mais parecia um bridão de cavalos. Ela era muito tímida e recatada, havia nascido no norte europeu mas já morava...

O SONHO

  Oi. Hoje eu sonhei contigo. Aliás, contigo não. Eu sonhei mesmo foi comigo. Comigo sim, porque o sonho era meu, mas também com você, porque você não era uma mera coadjuvante. Você era a outra metade dos meus anseios juvenis que, quase sexagenário que sou, jamais se concretizaram. Não que a falta de tais anseios me faça infeliz. Não faz. Apenas os troquei por outros, talvez mais relevantes, talvez não. Hoje de madrugada, durante o sonho, eu voltava a ter 20 anos e você devia ter uns 17 ou 18. Eu estava de volta à tua casa, recebido por você em uma antessala completamente vazia e toda branca. Branca era a parede, branco era o teto, branco era o chão. Eu chegava de surpresa, vindo de muito longe. Me arrependia e queria ir embora. Você  queria que eu ficasse, queria tirar minha roupa ali mesmo, queria que eu estivesse à vontade ou talvez quisesse algo mais. Talvez? Eu era um boboca mesmo. Você era uma menina bem assanhadinha, tinha os hormônios à flor da pele e eu era a sortuda ...

Porque não existem filas preferenciais nos EUA.

Entrei em contato com um amigo norte-americano que morou por muitos anos no Brasil e o questionei sobre a razão de não haver filas preferenciais nas lojas norte-americanas. Ele me respondeu que não havia apenas uma mas várias razões. Uma delas é legal, porque é anticonstitucional. A enxutíssima constituição dos Estados Unidos simplesmente proíbe que determinado grupo social tenha algum direito específico sobre outro. Ou todos têm ou ninguém tem. Então, lhe questionei sobre as ações afirmativas na área de educação. Ele me respondeu que as ações afirmativas seriam constitucionais porque serviriam justamente para nivelar um grupo social em desigualdade aos outros. O que não seria, segindo ele, o caso de gestantes, idosos e deficientes físicos. A segunda razão seria lógica e até mesmo logística: Uma fila preferencial poderia ser mais lenta do que a fila normal e acabar transformando um pretenso benefício em desvantagem. Isto abriria espaço para ações judiciais no país das ações judic...