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Morena Penha.

Eu era realmente fissurado naquela japonesa.  Japonesa brasileira, na verdade. Uma linda nissei, filha mais velha de imigrantes que vieram para o Brasil após o fim da segunda guerra mundial. Magrinha, pinta no canto da boca, cabelo espetado e pose de roqueira. Era metida a radialista e apresentava um programa meio mambembe em uma rádio local. 

Usava óculos de grau moderado que a deixava ainda mais charmosa e, enfim, aquela "japa", definitivamente, era quem eu gostaria que fosse a minha Yoko Ono, ainda que ela estivesse mais para May Pang, a belíssima amante nipônica que Lennon arranjou no seu famoso "lost weekend", um breve período de férias conjugais pelo qual o músico passou nos anos 70.

 Ela era irmã de um dos meus colegas da escola e, pelo menos, uns cinco anos mais velha que eu. Eu ainda brigava com os meus quatorze anos e ela já exalava a jovialidade adulta de quem aguardava ansiosamente adentrar os vinte. A voz...A voz era um quesito à parte. Afinal, não à toa ,era radialista.

Um dia, eu estava em sua casa e a vi de longe. Ela estava na cozinha,  de banho tomado, bastante perfumada, de calça jeans apertada  e um jeitinho hippie que enlouqueceria qualquer menino da minha idade. Enquanto ela fritava alguma coisa, ainda com a toalha do banho enrolada na cabeça, dançava suavemente ao som da canção que tocava no rádio. E o que o rádio tocava era Morena Penha, faixa do disco de Fagner lançado naquele ano. Aquela imagem demoraria de me abandonar pelos anos seguintes e, devo confessar, três décadas e meia depois ainda tem lá uma certa magia. 

Não que eu imaginasse que um simples presente iria conquistá-la  e fazê-la cair, de repente, nos braços daquele menino recém-chegado à adolescência. Sabia que aquele pequeno anjo representava o impossível para o menino imberbe, mas, ainda assim, queria dar-lhe um mimo, algo que a fizesse lembrar minimamente de mim.

Fui até a loja de discos mais próxima e comprei o LP de Fagner com a tal música. Foi uma compra dolorosa, que doeu de verdade no bolso daquele menino que vivia de mesada, mas meu amor platônico por aquela japonesa valia a pena. Pelo menos, eu tentava ardentemente me convencer disto enquanto caminhava até a sua casa.

Quando cheguei, a encontrei em pé na varanda, linda e deslumbrante como sempre. Me vendo com o disco nas mãos, não resistiu e me perguntou qual era o artista. 
-"É o novo de Fagner", respondi, meio sem jeito.
-"É o novo? O que tem Morena Penha?". Seus olhos brilharam diante de minha confirmação. Alguns pulinhos quase histéricos pareciam dimensionar a imensa alegria que a minha deusa oriental sentiria dali a alguns instantes, quando eu lhe dissesse que que aquele disco tão desejado seria seu. Foi então que ela fez a pergunta fatal:
-"É pra vender? Quanto é?"

Sem pensar, disse-lhe um valor duas vezes maior que aquele que havia pago pelo disco, alguns instantes atrás. Ela abriu a bolsa, depois a carteira e tirou dali algumas notas. O valor que ela me entregou era até mesmo um pouco maior do que o que eu pedira.
-"Eu não tenho troco aqui comigo", retruquei quase lhe devolvendo o dinheiro.
-"Pode ficar com o troco. Você não imagina como acaba de me deixar feliz'. E me sapecou um beijo no rosto. E saiu alegre, cantarolando "Morena Penha". Foi então que aprendi ali a minha primeira grande  lição sobre amar: Nem sempre o amor compensa, mas o capitalismo nunca nos decepciona.






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