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A outra perna do saci

Um belo dia na floresta, todos os sacis acordaram se sentindo estranhos, bem mais pesados, esquisitos mesmo. Ao tentarem se levantar, caíram. Tentaram de novo e caíram outra vez. Demoraram a se dar conta do que realmente havia acontecido: Todos os sacis da floresta acordaram com uma perna a mais. Passado o espanto inicial, finalmente conseguiram se equilibrar em pé. Porem, alguns instantes depois, quando tentavam andar, desabavam novamente no chão. Só depois de algumas horas de tentativas e escoriações, conseguiram, afinal, dar os primeiros passos.

Nenhum deles tinha a mínima ideia do que havia acontecido. Como aquela perna extra apareceu ali? E quem a teria colocado? Ela cresceu durante o sono? A triste realidade é que, agora, todos os sacis da floresta tinham duas pernas e eles teriam que se acostumar e tentar se adaptar à novidade. Um pouco mais calmos, procuraram por seus cachimbos para pitar e dar umas baforadas antes de iniciarem as travessuras. Mas, cadê os cachimbos?  Procuraram atrás dos arbustos, em cima das árvores e nada de encontrá-los. Foi então que a sacizada entrou mesmo em pânico. Com uma perna a mais, tudo bem, mas sem o fumo não dava para passar.

Eis que uma explosão repentina assustou todos os já confusos e assustados sacis. Quando a fumaça se esvaneceu, uma silhueta foi surgindo. Era uma bela mulher negra vestida de rendas e seda, com uma pequena varinha toda enfeitada com condão. Ela abriu um sorriso e, extasiada, se dirigiu aos sacis, todos com olhos arregalados:

- Olá, sacis. Como vão? Estão bem?
- Quem é você? Perguntou um deles que ousou se aproximar da esquisita aparição.
- Eu sou a fada do politicamente correto.
- E daí...? Retrucou um dos sacis, demonstrando rispidez e indiferença.
- Sentem aí que lá vem textão. Por muitos anos, o folclore brasileiro foi um ninho de figuras mitológicas brancas e europeias. O Curupira, por exemplo, é branco. A Iara é loira. Até o Boto é cor-de-rosa. Daí que vocês, meus caros sacis, são, ao lado do negrinho do pastoreio, a única referência folclórica nacional afrodescendente. E vejam só, fizeram vocês com uma única perna e com hábitos pouco saudáveis como fumar. Eu estou aqui para resolver isto. De agora em diante, vocês terão  duas pernas e não irão mais fumar.

Um burburinho tomou conta do sacizeiro e os protestos foram aumentando e aumentando, até que um deles resolveu falar pelos companheiros:
- Dona Fada do não-sei-o-quê-lá, quem lhe deu autorização para nos colocar uma perna a mais? E de onde a senhora tirou esta ideia de que a nossa vida vai ficar melhor com duas pernas? Pular de uma perna só sempre foi a nossa maior característica. E agora, quando uma criança quiser imitar um saci, como é que ela vai fazer? Vai ficar parada em pé feito idiota com as duas pernas no chão? E outra: O nosso cachimbo é nossa marca registrada. Eu nunca soube de nenhuma criança que começou a fumar porque viu uma gravura de um saci pitando. Pelo menos não tiraram a nossa touca vermelha....

-Então...Notem que a touca de vocês continua da mesma cor, mas agora ficou mais moderna e engajada, algumas estampadas com a foice e o martelo que bordamos nela, e que é símbolo do socialismo e outras com a foto do Che Guevara.
- Mas que diabos temos a haver com socialismo??? Somos folclore. Somos apolíticos!
- Olha, para explicar a razão, vai ter que ter outro textão...
- Não! Nada de textão! Queremos voltar a ter uma perna só outra vez e nossos cachimbos de volta ou vamos tocar o terror!
- E o que vocês chamam de "tocar o terror"?
- Pra começar, alguns de nós irão se declarar bolsonaristas. Depois vamos curtir a página do Olavo de Carvalho no facebook e sair por aí dizendo que Hitler era de extrema-esquerda. Vamos pedir por um golpe militar. E isto é apenas uma parte do que iremos fazer. A outra metade dos sacis, aqueles que estão ali naquele cantinho à esquerda, irão dizer que o Lula é honesto, obrigar todo mundo a ouvir discos do Tico Santa Cruz e ir a shows stand-up do Gregório Duvivier.


-Pronto, pronto! Podem parar! Já me convenceram. Tomem de volta seus cachimbos e quando dormirem, acordarão novamente com uma perna só. Eu queria que vocês crescessem e evoluíssem enquanto figuras mitológicas, se igualassem a um minotauro, um cíclope, um centauro, mas quem nasceu para dez réis nunca chega a vintém. Vou embora que eu tenho uma reunião daqui a cinco minutos para engajar o Negrinho do Pastoreio nos movimentos sociais pela Reforma Agrária.

E então, a  fada do politicamente correto sumiu no ar. No dia seguinte, todos os sacis acordaram novamente com uma perna só. E fomos todos felizes para sempre.

Comentários

João Régis disse…
É a influência do abstrato sobre o concreto armado

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