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OLÁ, ESTRANHO.

A história da música pop é recheada de "estórias". Estórias sobre amores inalcançáveis, amores desesperados, amores perdidos e amores encontrados. Nesta imensa lista de amores de todos os tipos, há também o panteão dos amores reencontrados.  Há inúmeras canções que falam do reencontro com alguém do nosso passado, que esteve distante por anos a fio e a quem não vemos faz muito tempo. Uma delas, talvez a que eu considere a mais bela, é "Hello, Stranger", gravação de 1963, de autoria e interpretação da cantora norte-americana Barbara Lewis.

A faixa foi regravada várias vezes
ao longo dos anos,  por artistas tão diferentes como Yvonne Elliman e Queen Latifah, mas a versão orginalíssima, a da autora em 63, ainda permanece imbatível. A sua harmonia vocal pegajosa é tão pegajosa que foi parar em diversas canções nacionais, entre elas a mais famosa, "Pingos de Amor", do pernambucano Paulo Diniz.

A malemolência preguiçosa da canção retrata perfeitamente a efemeridade da passagem de nossos fantasmas do passado pela nossa vida presente. Ela começa e termina e o "ex" reencontrado é apenas uma lembrança fortuita que passou rapidamente por nós e se foi após aquele esbarrão inesperado.

"Hello, Stranger" já acerta de cara no seu título, que em português quer dizer "Alô, estranho". Em seus pouco mais de dois minutos e meio, Barbara Lewis destila na letra simples, embalada por um ritmo pop soul que se aproxima de um bolero, toda a surpresa e estranheza do reencontro inesperado com alguém que faz parte do passado. É fácil perceber o misto de decepção e tristeza contida na sua interpretação, ainda que a letra diga exatamente o contrário, quase que como uma desculpa envergonhada, tamanho o entusiasmo do outro em lhe rever.

Quando se reencontra alguém que faz parte do passado, há duas posturas comuns que se costuma ter: Uma delas é aquela que alimenta a idealização do outro. Você se mostra o ser humano maravilhoso e mais que perfeito, para que o "ex" possa perceber "tudo aquilo que ele perdeu". Outra é a de se desnudar o mais verdadeiro possível, deixando claro que, apesar de ainda guardar muito daquela pessoa que fora antes, hoje você é um outro ser. Alguém  com uma outra personalidade, outras vivências, resultado das enormes cicatrizes dos anos em que estiveram distantes um do outro. E a maioria dos que reencontram seus antigos parceiros flutuam entre uma e outra, quando não intercalam as duas posturas.

Mas há uma terceira e talvez mais dolorosa postura, que é a da falta de vontade de se reapresentar ao "ex" enquanto objeto amoroso. E não se trata tanto de falta de vontade, mas de falta de interesse. Você não vê a necessidade de representar ser o que não é ou de se mostrar exatamente como realmente é, porque, simplesmente, não encontra nenhuma razão naquilo. O ex está ali, na sua frente, mas também está definitivamente plantado no passado e só faz sentido - ao menos enquanto símbolo amoroso - no passado. E é muito difícil para algumas pessoas aceitarem que sua importante representação passada amorosa na vida do outro, no presente beire a insignificância. É como Superman retornando a Kriptônia e acreditando que ainda se encontra vivendo na Terra, esperando lá voar e usar seus olhos de raio xis.

Quando o "ex" idealiza o outro, antes de revê-lo, cria uma imagem coerente com a do passado.  O outro ainda é aquela pessoa com a boca cheia de dentes,  com todos os cabelos no lugar e sem as manias e as doenças adquiridas ao longo dos anos. O "ex" critica o muro sem pintura da casa atual do antigo parceiro porque não consegue enxergar  por dentro dela e perceber como tudo em seu interior já foi reformado e - algumas vezes - à custa de grandes sacrifícios. O "ex" encontra uma estrutura pronta, completa e alicerçada e  quer ela perfeita porque ele também deseja, de alguma forma, de volta,  o antigo parceiro perfeito. Com a perfeição que nem naqueles dias passados existia, mas que hoje é tudo que ele consegue reviver, porque apagou completamente os defeitos do ex-amor, apagando assim os dele próprios.

O ex, quando procura a antiga paixão - e quando procura também emoções e recordações do passado - na verdade, procura apenas a si mesmo. É consigo mesmo que ele quer se reencontrar e não com o ex-parceiro. E sempre há quem queira reencontrar-se a si mesmo no passado de tão insatisfeito que está com o seu eu do presente. Da mesma forma, há quem queria a maior distância possível do seu eu de anteontem - quanto mais o de décadas atrás -  e apenas deseje viver intensamente a sua vida atual. Vida que obviamente não é a mais feliz  mas traz em si a felicidade possível. E é esta postura que o "ex", muitas vezes insatisfeito com tudo a sua volta,  considera medíocre e não consegue aceitar ou entender.

E quando duas pessoas buscando coisas tão díspares se encontram, o único resultado possível, após um breve período de "re-reconhecimento", é a mais completa e profunda estranheza. Daí poder-se dizer "olá, estranho" àquela pessoa desconhecida que você mais conheceu na vida. Parece que faz tanto tempo...Estou tão feliz em te reencontrar...Adeus, estranho. E a canção acaba da mesma forma que começou.






Comentários

teixeiraofla disse…
Muito bom!!👏🏽👏🏽👏🏽

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