Pular para o conteúdo principal

OS MENINOS QUE VENDIAM DOCES.

Hoje eu me dei conta que aqueles meninos que  saiam pelas ruas da cidade vendendo doces andam sumidos.  Sempre apareciam em meu trabalho desfilando simpatia, me chamando de tio e pedindo para ajudá-los comprando suas balas e chicletes.  E eu comprava sempre que podia, mesmo que nem precisasse ou quisesse.  Nunca gostei de dar esmolas, sempre preferi comprar algo de quem vendia alguma coisa, sempre coerente com meu espírito liberal.  Assim, já me enchi de mini-calculadoras chinesas, chicletes, doces, cofrinhos toscos feitos a mão, flanelas, pastas de limpeza que não limpavam direito, tudo em nome da livre iniciativa jovem e popular. E, hoje em dia, os  meninos,  simplesmente, sumiram.


Percebido o sumiço, resta imaginar onde os meninos podem estar:  Nas escolas, por força das exigências do Bolsa-Família, que condiciona o recebimento do benefício à matrícula dos filhos na rede escolar? Ou foram recrutados pelo  tráfico, que cresce nas grandes cidades com o ritmo da recessão e da crise? Quero acreditar que estão todos nas escolas, uniformizados, de banho tomado e cabelo penteado, em carteiras novas e salas de aula com cheiro de recém pintadas a tinta a óleo, como na minha infância.  

Eu sou mesmo um crente, eu quero realmente acreditar que é assim. Mas um amigo, morador de um dos bairros mais perigosos de minha cidade, onde o tráfico impera, desfaz as minhas esperanças.  Estão todos no tráfico, nas esquinas - ele me diz - repassando drogas a mando dos adultos. E me convida a ver com meus próprios olhos, citando hora e local em que o triste fato acontece.

Hoje  lembrei  de dois deles em especial: Um menino esperto, com cerca de doze anos, de olhos vivos e verdes e de voz rouca, que sempre me oferecia os doces que acabavam nas mãos de minha filha. Sempre recomendava a ele que não parasse de estudar e ele sempre me dizia que estudava pela manhã e trabalhava à tarde. 

Outro, mais velho, vendia bugigangas chinesas e  tinha um aspecto mais rude, a fisionomia sempre fechada, jeito de quem sofreu demais para a pouca idade que tinha. Mas era polido e honesto. Um dia, comprei-lhe uma coisa qualquer e dei dinheiro a mais, sem perceber. Ele prontamente me devolveu a diferença, dizendo uma frase que, de tão marcante, saída dos lábios de alguém tão jovem, a uso até hoje: -“O dinheiro que presta é o meu, o dos outros não quero nem saber” .

Quero continuar imaginando que estes meninos não foram exterminados por nenhuma milícia, nem foram recrutados como soldados do tráfico. Quero mesmo crer que eles sumiram porque estão na escola, se preparando para ser alguém na  vida.  Foram salvos, resgatados, e estão encaminhados.  Nestes meninos, garotos pobres que desde cedo aprenderam o valor do trabalho honesto, mesmo tendo a infância roubada;   é neles  que está o último refúgio de minha esperança no futuro deste país.  Que um dia os reveja no jornal, como empresários de sucesso, e não como cadáveres-meninos nas páginas policiais.

(Update: Alguns meses após ter escrito e publicado este texto, encontrei-me com um deles. Agora vendia CDs piratas. Me informou que o outro garoto também vendia o mesmo produto. Aconselhei-lhe que continuassem no caminho do bem, apesar do produto que agora vendiam, não fosse considerado completamente lícito.)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A CARTA ANÔNIMA

 Quando eu era menino, ainda ginasiano, lá pela sexta série, a professora resolveu fazer uma dinâmica bastante estranha. Naquele tempo ainda não tinha esse nome mas acho que ela quis mesmo fazer uma dinâmica, visto pelas lentes dos dias atuais. Ela pediu que cada aluno escrevesse uma carta anônima, romântica, se declarando para uma outra pessoa.  Eu confesso que não tive a brilhante ideia de escrever uma carta anônima para mim mesmo e assim acabei sem receber nenhuma carta falando sobre os meus maravilhosos dotes físicos e intelectuais. Já um outro garoto, bonitão, recebeu quase todas as cartas das meninas da sala. E sabe-se lá se não recebeu nenhuma carta vinda de algum colega do sexo masculino, escrita dentro de algum armário virtual. Eu, é claro, escrevi a minha carta para uma menina branca que nem papel, de óculos de graus enormes e um aparelho dentário que mais parecia um bridão de cavalos. Ela era muito tímida e recatada, havia nascido no norte europeu mas já morava...

O SONHO

  Oi. Hoje eu sonhei contigo. Aliás, contigo não. Eu sonhei mesmo foi comigo. Comigo sim, porque o sonho era meu, mas também com você, porque você não era uma mera coadjuvante. Você era a outra metade dos meus anseios juvenis que, quase sexagenário que sou, jamais se concretizaram. Não que a falta de tais anseios me faça infeliz. Não faz. Apenas os troquei por outros, talvez mais relevantes, talvez não. Hoje de madrugada, durante o sonho, eu voltava a ter 20 anos e você devia ter uns 17 ou 18. Eu estava de volta à tua casa, recebido por você em uma antessala completamente vazia e toda branca. Branca era a parede, branco era o teto, branco era o chão. Eu chegava de surpresa, vindo de muito longe. Me arrependia e queria ir embora. Você  queria que eu ficasse, queria tirar minha roupa ali mesmo, queria que eu estivesse à vontade ou talvez quisesse algo mais. Talvez? Eu era um boboca mesmo. Você era uma menina bem assanhadinha, tinha os hormônios à flor da pele e eu era a sortuda ...

Porque não existem filas preferenciais nos EUA.

Entrei em contato com um amigo norte-americano que morou por muitos anos no Brasil e o questionei sobre a razão de não haver filas preferenciais nas lojas norte-americanas. Ele me respondeu que não havia apenas uma mas várias razões. Uma delas é legal, porque é anticonstitucional. A enxutíssima constituição dos Estados Unidos simplesmente proíbe que determinado grupo social tenha algum direito específico sobre outro. Ou todos têm ou ninguém tem. Então, lhe questionei sobre as ações afirmativas na área de educação. Ele me respondeu que as ações afirmativas seriam constitucionais porque serviriam justamente para nivelar um grupo social em desigualdade aos outros. O que não seria, segindo ele, o caso de gestantes, idosos e deficientes físicos. A segunda razão seria lógica e até mesmo logística: Uma fila preferencial poderia ser mais lenta do que a fila normal e acabar transformando um pretenso benefício em desvantagem. Isto abriria espaço para ações judiciais no país das ações judic...