Pular para o conteúdo principal

CAFÉ COM HIPOCRISIA.

Um dia, faltou açúcar em casa e havia um bule de café quentinho recém-feito esperando para ser esvaziado. Não pensei duas vezes: Enchi uma xícara de café amargo imaginando que só mesmo o vício em cafeína faria alguém tomar uma  medida tão drástica assim. Passada a estranheza do primeiro contato com o amargor da bebida, fui percebendo o aroma que se escondia por detrás dos cristais de cana que adoçavam o meu café. E percebi que, sem açúcar, o café era uma bebida muito mais interessante. A relação entre o cheiro e o gosto era muito mais intensa. Cheguei à conclusão que o doce estragava o paladar da bebida e que, dali em diante, nunca mais tomaria café adoçado.

A resolução durou o exato tempo em que alguém foi ao mercado e voltou com um quilo de açúcar. Até que tentei continuar tomando café amargo mas, em um dado momento, declinei e voltei a tomar a bebida contaminada com o gosto da cana. Apesar dos odores, dos aromas, da experiência fantástica de degustação pela qual passei, simplesmente, o café mais doce era também mais fácil de tomar, parecia descer mais leve e aquecer mais intensamente.

Na vida, a hipocrisia é uma espécie de açúcar que adoça o café das relações humanas. Escolher o gosto amargo da sinceridade, da franqueza, da autenticidade, é tão estranho e tão mal visto quanto alguém que prefere tomar uma xícara de café amargo em vez de adoçá-lo. Da mesma forma que o açúcar age com o café, a hipocrisia maquia, disfarça, ilude, confunde, distrai o interagir e o existir. E ai de quem não aprendeu a adoçar suas relações sociais, será um eterno condenado a se decepcionar, se desiludir, se enganar e se entristecer com a feiura da humanidade.

A verdade é que, se alguém não pratica a hipocrisia, o estranho da relação é ele. Nos evangelhos, a palavra-chave do que supostamente sai da boca de Jesus de Nazaré é a negação da hipocrisia. Jesus a combateu com tamanha intensidade e energia que acabou crucificado pelos religiosos hipócritas do seu tempo, que não gostaram de ver seu lado obscuro revelado. 

E este é o fim de todos os que não se enquadram e não conseguem - ou simplesmente não querem - ser hipócritas: Diminuídos, ridicularizados, rejeitados, tratados como problemáticos e esquisitos. E talvez, até sejam tudo isto mesmo. Afinal, a natureza do homem deve mesmo  a de ser hipócrita. Aliás, a mesma dos primos primatas bonobos, que, de tão macacos nem parecem humanos. E talvez nem seja assim tão ruim abraçar a hipocrisia, nem que seja para anular ou amenizar a falsidade do próximo.

Então eu me lembrei de outra bebida que demorei a descobrir o quanto é melhor amarga: A cerveja preta. Era fã da Maltzbier, doce, xaroposa e caramelizada, até descobrir a escura, densa, forte e amarga. E ótima para acompanhar as refeições. Pois quem sabe a cerveja preta não possa me dar as respostas às questões que a outra bebida escura não respondeu: Ser denso, forte e amargo pode facilitar-nos engolir os sapos do cotidiano. E, afinal, talvez assim possamos digerir melhor a dose de açúcar com que maculamos nosso café do dia a dia.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A CARTA ANÔNIMA

 Quando eu era menino, ainda ginasiano, lá pela sexta série, a professora resolveu fazer uma dinâmica bastante estranha. Naquele tempo ainda não tinha esse nome mas acho que ela quis mesmo fazer uma dinâmica, visto pelas lentes dos dias atuais. Ela pediu que cada aluno escrevesse uma carta anônima, romântica, se declarando para uma outra pessoa.  Eu confesso que não tive a brilhante ideia de escrever uma carta anônima para mim mesmo e assim acabei sem receber nenhuma carta falando sobre os meus maravilhosos dotes físicos e intelectuais. Já um outro garoto, bonitão, recebeu quase todas as cartas das meninas da sala. E sabe-se lá se não recebeu nenhuma carta vinda de algum colega do sexo masculino, escrita dentro de algum armário virtual. Eu, é claro, escrevi a minha carta para uma menina branca que nem papel, de óculos de graus enormes e um aparelho dentário que mais parecia um bridão de cavalos. Ela era muito tímida e recatada, havia nascido no norte europeu mas já morava...

O SONHO

  Oi. Hoje eu sonhei contigo. Aliás, contigo não. Eu sonhei mesmo foi comigo. Comigo sim, porque o sonho era meu, mas também com você, porque você não era uma mera coadjuvante. Você era a outra metade dos meus anseios juvenis que, quase sexagenário que sou, jamais se concretizaram. Não que a falta de tais anseios me faça infeliz. Não faz. Apenas os troquei por outros, talvez mais relevantes, talvez não. Hoje de madrugada, durante o sonho, eu voltava a ter 20 anos e você devia ter uns 17 ou 18. Eu estava de volta à tua casa, recebido por você em uma antessala completamente vazia e toda branca. Branca era a parede, branco era o teto, branco era o chão. Eu chegava de surpresa, vindo de muito longe. Me arrependia e queria ir embora. Você  queria que eu ficasse, queria tirar minha roupa ali mesmo, queria que eu estivesse à vontade ou talvez quisesse algo mais. Talvez? Eu era um boboca mesmo. Você era uma menina bem assanhadinha, tinha os hormônios à flor da pele e eu era a sortuda ...

LEMBRANÇAS DE WILSON EMÍDIO.

E sta é uma história sobre rock e amizade. Não importa muito se você nunca ouviu falar de  Wilson Emídio.  Certamente, se você gosta das duas ou de uma das coisas - rock e fazer amigos - , você vai gostar do que vai ler aqui. E m 1984, eu tinha uma banda de rock chamada Censura Prévia. Ensaiávamos na sala de estar de minha casa, assim como os Talking Heads ensaiavam na sala de estar do David Byrne no início da carreira. Tanto que, ao ver aquelas fotos do disco duplo ao vivo da banda  nova-iorquina,  me remeto imediatamente àqueles tempos. E, por mais incrível que possa parecer, nós tínhamos duas fãs. Eram duas vizinhas que não perdiam um ensaio, sentadas no sofá enquanto se balançavam, fazendo coreografias, rindo muito e tomando refrigerante. Um dia elas resolveram criar  um fã-clube para o nosso conjunto amador. Na verdade, elas mandaram uma carta para a revista Rock Stars,   uma publicação de quinta categoria, mas baratinha e acessível aos quebrados ...