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Meu plano.

Há quem acredite que grandes amores podem nascer de pequenas amizades mas eu prefiro acreditar que grandes amizades podem nascer de pequenos amores. Nosso amor foi tão pequeno, mas não por falta de merecimento, meu ou dela. Foi pequeno porque morávamos em cidades distantes e distintas, em universos paralelos que só se encontrariam no infinito da internet.

Eu a conheci em um show de uma banda que ambos gostávamos. Estava passando uma temporada em sua cidade e, naquela noite, por ser amigo do vocalista, tive acesso livre ao camarim. 

Ela estava lá, sentada de pernas cruzadas, elegante como uma pin up moderna, toda de preto. Maquiada, tal qual uma Soiuxsie Sioux tropical, com um copo de uísque em uma das mãos e um cigarro no outro, dona do sorriso mais receptivo que eu já havia visto naqueles últimos cinco segundos.

Para tristeza do meu amigo cantor, naquele dia, eu não vi sequer um minuto do show da sua banda.  Passamos a noite, eu e aquela punkette, conversando sobre absolutamente tudo: música, literatura, diferenças e semelhanças entre paulistas e baianos. Descobrimos muitas coisas em comum além do gosto musical: ela também era virginiana e fazia aniversário no dia seguinte após o meu. Ao fim da noite, tomei coragem e roubei-lhe um beijo. Ela adorou. O roubo e o arroubo.


Trocamos e-mails, telefone, perfis do Orkut e prometemos nos ver sempre virtualmente, já que, no dia seguinte, eu retornaria à Bahia. Foi deste pequeno e delicado momento que surgiu a amizade que salvaria várias vezes a minha vida.

Eu havia acabado de me separar, após um casamento que, por pouco, não alcançara a maioridade, e estava completamente perdido, como um cachorro que é abandonado na rua pelo dono. Eu simplesmente não sabia o que fazer com a minha repentina solteirice e aqueles dias e aquelas noites conversando com ela ao MSN, um fazendo companhia ao outro em nossa solidão particular, me serviram de elixir revigorante para encarar a nova vida que me esperava.

Fiz uma canção para ela, também lhe fiz todas as confidências possíveis e impossíveis e ela igualmente entregou um pouco da sua vida em minhas mãos. De tão longe, eu cuidava dela e ela cuidava de mim. Amor era uma palavra proibida, éramos apenas amigos, fazíamos questão de afirmar e reafirmar isto a cada dia que passávamos juntos e tão distantes, enquanto trabalhávamos, eu em meu estúdio, ela em sua casa.


Secretamente, sonhava com a sua presença ao meu lado. Sonhava em dormir com ela, mas me recusava a aceitar que a amava, assim como ela jamais me diria “eu te amo”. Um dia, em um fim de semana, ela pegou um avião e foi parar em Salvador. Me ligou de lá. Ordenou-me, como boa virginiana que era, que viesse ao seu encontro. Era uma tarde de sexta e no cair da noite um abraço forte nos uniu, no saguão do hotel em que se hospedara.

Ela me pegou pelas mãos, me levou até a portaria e ordenou-me novamente que eu me registrasse. Aquiesci. Aquele fim de semana seria absolutamente nosso, ela me disse, com um olhar de promessas e um sorriso encantador. E assim foi.

Na segunda pela manhã, eu, que tive tudo por algumas horas, nada mais teria. Ela já estava em um avião, de volta à sua realidade metropolitana, e eu, de ônibus, de volta à minha, de homem interiorano. Nosso encontro em nada afetou nossa amizade. Mentira, pois continuamos mais amigos do que nunca e ela ainda salvaria a minha vida mais algumas vezes.

Hoje, exatamente hoje, aquele show completa 10 anos e, com ele, a nossa amizade também. Ela continua linda, jamais deixará de ser, e sei que, apesar de estar tão longe, sempre poderei contar com ela. E ela comigo. Sua identidade é um segredo nosso. Como todos os segredos que trocamos. 

Amizades verdadeiras são assim. Resistem a tudo: à distância, ao tempo, até mesmo à cama. Só não resistem à saudade. Saudades dela, que, nos versos tortos da canção que eu lhe fiz, um dia, fez parte de meu plano para dominar o mundo. E eu jamais esquecerei de dizer que sim, eu comecei por ela. 


 Fotos por Richard Bellia - www.richardbellia.com



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