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A CENA DOS ELOGIOS TROCADOS.

            Ponha dois artistas rivais da música baiana em uma sala, tranque-os e volte depois de trinta minutos.  Eles terão ensaiado cinco músicas em dueto, duas de cada um e uma de Dodô e Osmar para homenagear os 30 anos de Axé-Music. Acertarão a gravação de um CD, um DVD, montarão um novo bloco no carnaval e criarão uma nova grife de roupas. Ponha dois roqueiros feirenses de duas tribos diferentes em outra sala, tranque-os e volte depois de trinta minutos. Recolha os corpos.

             Feira de Santana pensa que tem uma cena musical,  mas infelizmente  não tem. E talvez nunca tenha tido.  “Cena” é quando há um agrupamento de artistas com o mesmo interesse e criando alguma coisa verdadeiramente nova e uniforme.  Isto não há.  O que há é um festival de  individualidade e corporativismo onde quem não se enquadra não entra na roda e fica de fora.

A coletivização da cultura na cidade, a despeito de ser um fenômeno nacional, não trouxe nenhum grande benefício a  longo prazo.  Não aumentou o interesse do público, não projetou o município fora de seus limites, não uniu artistas em torno de absolutamente nada que dissesse respeito  ao fomento da arte.  

    A cena musical feirense pratica uma espécie de fagocitose, onde  o artista surge (a partícula), é  convidado a ser engolido pelos pseudópodos (os diversos coletivos)  e, quando isto acontece, se torna uma partícula englobada, sem comunicação com o meio. Quem não faltou às aulas de biologia no ginásio entendeu o que eu quero dizer.

Quando falo em coletivização, diga-se de  passagem, não me refiro  a este ou aquele coletivo cultural existente na cidade e sim a todos os que surgiram no rastro do Fora do Eixo e da Abrafin,  se assumindo como coletivos ou não.   O resultado é o que está aí:  uma cena, se é que pode ser chamada assim, cada vez mais fragmentada, enfraquecida e, principalmente, desimportante.

A cena musical de Feira de Santana,  notadamente a parte mais roqueira, é a cena dos elogios trocados.   O artista “A” elogia o artista “B”, que se sente afagado e devolve o elogio.  Então, ambos, o artista “A” e o artista “B”, comentam sobre o artista “C”´ e  quanto ele é talentoso. O artista "C" agradece comentando como os artistas “A” e “B” são importantes e relevantes para a cidade. O artista “D”, que não faz parte da panela,  é ignorado e vai procurar o artista “E” para recomeçar todo o processo. E assim, neste ritual de bajulação mútua,  uma cena vai se desconstruindo aos poucos.

O primeiro erro da cena local é nunca ter se preocupado em formar  um público.  Um público bem formado  gera novos artistas que reacenderão o interesse da plateia em uma espécie de círculo virtuoso. E para isto, é necessário que a  audiência,  antes de mais nada, se identifique com aquilo que está ouvindo e principalmente, com quem está tocando.  Sem esta empatia, formam-se nichos de público que, mais cedo ou mais tarde, acabam se esgotando.  

Foi o que não aconteceu na cena soteropolitana de 1982, alicerçada pelo grupo Camisa de Vênus. Formou-se um público, que comparecia em massa aos shows.  Deste público saíram outras bandas, que fortaleceram o movimento cultural roqueiro da cidade até 1986,  quando o surgimento da  Axé-Music e a mudança do Camisa para São Paulo decretaram o fim daquela era.

Por outro lado, nem tudo é culpa dos artistas. O público de Feira de Santana tem uma imensa dificuldade de valorizar o trabalho de quem é “da terra”.  Feira de Santana não bate palmas.  O artista da cidade que alcançar projeção nacional terá conseguido sem ter sido consagrado aqui, justamente porque a audiência local não está interessada em consagrar ninguém que não seja “de fora”.   O apoio e o interesse do público é  fundamental, a outra metade da maçã, e sem ele, qualquer cena naufraga.

O fenômeno da fragmentação recente, com a formação de “ilhas”, agrupamentos isolados que não se comunicam e raramente trabalham juntos,  vem apenas  sublinhar o insucesso natural de colocar Feira de Santana sequer em seu próprio mapa cultural, quiçá do estado ou do país.   O público do coletivo “A” não frequenta os shows do coletivo “B”, até porque os coletivos “A”, “B” e “C” resolveram marcar eventos no mesmo dia para disputar público e medir poder. E assim, citando Fellini ao inverso, “la nave non va”.

Eu costumo dizer que música não é corrida de autorama.  Música é a coletivização espontânea,  o ajuntamento natural por algo maior,  a busca por um todo em que você é apenas uma parte dele.  Ter  formalizado e burocratizado ajuntamentos que deveriam ocorrer naturalmente não fez bem para a música da cidade.  E, agora, cá estamos nós nos perguntando quais serão as cenas dos próximos capítulos.  Se houver algum capítulo.


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