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O DIA DE SÃO RAUL.

Raul Seixas voltará. Voltará e guiará a todos os seus seguidores para o valhalla prometido, onde fica a Sociedade Alternativa, o éden sagrado nos céus, e onde descansaremos todos em sua mais santa paz. Estaremos preparados, esperando o messias em uma roda, em volta de uma fogueira, tocando violão, fumando alguma coisa verde e fingindo que somos estes seres elevados que pensamos que realmente somos. E quando São Raul voltar, voltará em toda a sua glória, separando os que o aceitaram daqueles que ainda insistem em o renegar.

Todos aqueles que um dia, ou melhor, uma noite, em um show qualquer, seja de uma banda de forró eletrônico, seja de punk hardcore, pediram, aliás, exigiram, que o santo som do Senhor Raul fosse tocado, todos estes serão compulsoriamente salvos e libertos. Toca Raul!

Raul nasceu na Bahia. Na terra do axé, no lugar mais anti-rock and roll do universo inteiro. Não, não importa que o rock and roll seja tão negro quanto o axé. Faz de conta que ele nasceu branquinho como Elvis Baptista, o anunciador do messias, e Raul Seixas, o messias em pessoa. Raul veio para lutar contra os “oi-oi-oi” e os “ai-ai-ai” da baianidade nagô e nos preparar para um futuro em que todos seremos felizes ao som de um mântrico  plunct-plact-zum roqueiro.

Não. Pára tudo. Raul Seixas foi um artista formidável, dono de uma obra consistente, um tanto contraditória em sua essência, o que só aumenta seu charme e importância. Nunca se adequou mesmo ao que se costumou chamar de “baianidade”. Nunca foi um novo baiano, nem mesmo um velho baiano. Não fez parte do movimento da tropicália, embora fosse tropicalista até a medula.

A inconformidade e o desajuste musical de Raul lhe trouxe mais malefícios que benefícios. Não fazer parte de nenhuma turma o deixou isolado e pronto para, após a sua morte, ser cultuado como uma espécie de divindade musical.

Seja nos seus aniversários de vida ou de morte, lá estão eles, os seus fãs, sentados ao lado de seu túmulo, no cemitério Jardim da Saudade, em Brotas, Salvador, com um baseadinho e um violão, entoando as canções que eles acreditam que Raul fez para eles. E é nesta hora que tudo deixa de fazer sentido. Como alguém tão iconoclasta como Raul Seixas, tão avesso a adorações e cultos, o homem que matou e enterrou seu ídolo em 1956, antes mesmo que ele fosse morto pelo próprio empresário, como pôde Raul cair nesse poço sem fundo da adoração barata? Adoração inconsistente, transformadora do artista em mito, anulando assim tudo de bom que pode haver em sua obra?

Sim, porque hoje Raul Seixas não é apenas maior que ele mesmo em vida. Também é maior que sua própria música. Quando ludibriaram Bruce Springsteen e o fizeram cantar Sociedade Alternativa, havia ali a rendição à banalidade em que se transformou o que nunca havia sido banal. Toca-se Raul não pela sua importância, legítima e verdadeira, mas para que seus fãs simplesmente parem de encher o saco.

Tenho alguns discos de Raul Seixas em minha discoteca, porém, raramente os ouço, o que é uma pena. O culto desnecessário e exagerado a Raul tirou a minha vontade de escutá-los. Talvez seja exatamente isto que os fãs do artista desejem: Que todos nós, os ateus de sua divindade, nós, os não iluminados, deixemos de ouvi-lo. E que só os verdadeiros devotos de São Raul possam ter e se dar ao direito de ouvir as mesmas canções de sempre, os clássicos, as cartas e as epístolas, escondendo do mundo coisas maravilhosas e pouco roqueiras ou messiânicas como, por exemplo, o álbum Mata Virgem, de 1979, detestado ou até mesmo desconhecido por boa parte dos fãs.


Em 28  de junho deste ano comemora-se os 70 anos de nascimento do cantor. Mês que vem, os 26 de morte. Então você se dá conta de que Raul viveu meros 43 anos. Morreu cedo. Se estivesse vivo, se a pancreatite não o tivesse carcomido em vida, ainda pudesse nos brindar com canções maravilhosas como as que compôs e gravou enquanto a doença não lhe consumiu. E, quem sabe nós, estes ateus de sua deificação inútil, pudéssemos gritar nos seus shows, a plenos pulmões: Toca, toca muito, toca para mim, Raul!

Comentários

Unknown disse…
Esse é o nosso sonho sonho que se sonha só é só um sonho mas sonho que se sonha junto e realidade

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