Pular para o conteúdo principal

Um disco por ano de vida: "In The Court Of The Crimson King" - King Crimson (1969)

A história do rock poderia se dividir em "antes" e "depois" de várias datas. Uma delas é 11 de outubro de 1969, quando o disco de estréia da banda inglesa de rock progressivo King Crimson enxergou a luz do dia. Naquela ocasião, o King Crimson era um grupo com apenas sete meses de existência, e a seis do seu, até então, único concerto, abrindo para os Stones no lendário Rolling Stones Free Concert, no Hyde Park, em Londres.


Apesar de tudo isto, o grupo não era exatamente iniciante. Haviam gravado um disco de razoável repercussão no Reino Unido com o nome de Giles, Giles And Fripp. Inicialmente um trio, o grupo recebeu a adição de Ian McDonald e Peter Sinfield. Com a saída de um dos Giles, o Peter, e a chegada do vocalista Greg Lake, já não havia mais sentido algum em manter o antigo nome e passaram a se chamar King Crimson. O nome da banda  foi tirado de uma música anteriormente composta por McDonald e Sinfield chamada "InThe Court Of The Crimson King" que viria a batizar e fazer parte do primeiro disco.


Muito do que é ouvido em "In The Court Of The Crimson King" foi composto com a banda já dentro do estúdio, embora a base das canções possa ser a mesma. Aquela banda um tanto formal que abrira para os Stones fora substituída por um quinteto que produzia uma música incrivelmente original, uma mistura de jazz, rock, alternando momentos de extrema sutileza e outros momentos de distorção e muito peso, o que levou o grupo a ser chamado pela imprensa inglesa de "música pesada inteligente".

Curiosamente, uma grande parte de tanta distorção e peso não foram intencionais. Após a gravação do disco, os técnicos de som perceberam que as cabeças do gravador análogo utilizado não haviam sido corretamente alinhadas, ocasionando perda de altas frequências e a consequente distorção. O "defeito" é particularmente notável na faixa de abertura  "21st Century Schizoid Man", porém chegou a ser corrigido em edições subsequentes do álbum. A reedição feita na década de 80 para comemorar os 20 anos de lançamento do LP trouxe de volta a gravação como havia sido feita originalmente. Algo parecido ocorreu com as primeiras edições em CD do disco de estréia dos também ingleses do The Jesus And Mary Chain, que tiveram os níveis de ruídos e distorções de Psychocandy reduzidos radicalmente, causando reclamações por parte dos fãs.


Inicialmente, "In The Court Of The Crimson King" seria produzido por Tony Clarke, que antes havia trabalhado com The Moody Blues no seu álbum de sucesso Days Of a Future Passed. Clarke acabaria sucumbindo à anarquia e a criatividade sem rédeas da banda e abandonando o projeto, deixando o grupo livre para se autoproduzir.

Ouvido à época, ninguém suspeitaria que o primeiro disco do King Crimson se tornaria um clássico absoluto com o passar dos anos. São apenas cinco faixas, algumas subdivididas em duas partes, em pouco menos de 44 minutos. O lp abre com aquela faixa que viria a ser considerada o cartão de visitas da banda, "21st Century Schizoid Man". A experiência de ouvir seus 7:23 de duração, principalmente em fones de ouvido, é indescritível. Com uma primeira parte pesada e amarga e uma segunda que antecipa em 20 anos as bandas de jazz-punk que surgiriam lá pela década de 90, a canção desemboca em uma outra pérola delicada, a belíssima, a suave "I Talk To The Wind", uma faixa climática e sonhadora, de letra caprichada, de autoria de Peter Sinfield.

"Epitaph", outra faixa suave e delicada, traz versos belíssimos como "confusion will be my epitaph" (a confusão será meu epitáfio). No lado B. "Moonchild" é dividida em duas partes: a barroca "The Dream" e a psicodélica "The Illusion", recheada de "fripptronics", onde a melodia se torna apenas uma sugestão. Quem passar por esta segunda parte de "Moonchild" fatalmente se tornará um fã do Crimson King. Encerrando o disco "In The Court Of The Crimson King", épica e igualmente dividida em duas partes, dá o pontapé inicial para tudo que seria feito nos anos seguintes e levaria o rótulo de "progressivo".


A arte de capa é de autoria do pintor Barry Godber, amigo pessoal do guitarrista Robert Fripp, que morreria alguns meses antes do disco ser lançado. A pintura original permaneceu nos escritórios da EG Records até o próprio Fripp a ter retirado para uma recuperação, já que apresentava visíveis sinais de deterioração.

"In the court of the Crimson King" encerra com raiva e desesperança a década do flower-power. Chega até mesmo a ser um disco profético, uma outra forma de dizer que o sonho, afinal, acabara. O King Crimson sofreria inúmeras mudanças de formação, cometeria discos irrepreensíveis e chegaria renovado e pronto para a briga à década de 80, mas nunca mais gravaria nada sequer parecido com seu primeiro disco, subtitulado "Uma observação pelo King Crimson". Muito bem observado.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Porque não existem filas preferenciais nos EUA.

Entrei em contato com um amigo norte-americano que morou por muitos anos no Brasil e o questionei sobre a razão de não haver filas preferenciais nas lojas norte-americanas. Ele me respondeu que não havia apenas uma mas várias razões. Uma delas é legal, porque é anticonstitucional. A enxutíssima constituição dos Estados Unidos simplesmente proíbe que determinado grupo social tenha algum direito específico sobre outro. Ou todos têm ou ninguém tem. Então, lhe questionei sobre as ações afirmativas na área de educação. Ele me respondeu que as ações afirmativas seriam constitucionais porque serviriam justamente para nivelar um grupo social em desigualdade aos outros. O que não seria, segindo ele, o caso de gestantes, idosos e deficientes físicos. A segunda razão seria lógica e até mesmo logística: Uma fila preferencial poderia ser mais lenta do que a fila normal e acabar transformando um pretenso benefício em desvantagem. Isto abriria espaço para ações judiciais no país das ações judic

Terra de Anões

Eu hoje estava ouvindo no meu smartphone, enquanto caminhava, aquela música dos Engenheiros do Hawaii chamada "Terra de Gigantes" em que um dos versos afirma que "a juventude era uma banda em uma propaganda de refrigerantes". Criticava-se a alienação dos jovens. E a maioria de nós éramos os jovens, por sinal. Mas o que tínhamos? Tínhamos internet? Tínhamos Google? Tínhamos acesso quase que instantâneo a toda a história da humanidade, a que passara e a que estávamos vivendo? Que culpa tínhamos de sermos alienados se não tínhamos a informação? Pois é, não tínhamos nada. E, ainda assim, éramos a banda na propaganda de refrigerantes. Como também disse o mesmo compositor, éramos o que poderíamos ser. Pelo menos, errados ou certos, éramos a banda. E hoje, com toda a informação em suas mãos, o que os jovens se tornaram? Se tornaram um bando em uma propaganda de refrigerantes. Gente que se deixa iludir por truques "nível fanta" em vez de tentar consumir

NOS TEMPOS DA BRILHANTINA.

      T em filme que envelhece bem, permanecendo um clássico muito tempo após ser lançado, ainda que seja, ao menos a princípio, datado. Um exemplo é o filme Blues Brothers ("Os Irmãos Cara-de-Pau").  Lançado para capitalizar o sucesso do quadro de Jim Belushi e Dan Akroyd no programa Saturday Night Live , a película acabou alcançando dimensões muito maiores do que a originalmente planejada, se tornando um sucesso mundial e provocando um renascimento (ou surgimento) do interesse pelo rhythm and blues e pela soul music entre os jovens e apreciadores de música em geral. O utros são tão oportunistas - ou aparentam ser - que, desde o lançamento, são considerados lixo,  trash-movies . Muito criticados no momento em que ganharam as telas dos cinemas, adquirem respeito e alguma condescendência com o passar dos anos. O exemplo ideal deste tipo de filme seria Saturday Night Fever , o nosso "Embalos de sábado à noite". Revisto hoje em dia, seu simplismo e aparênc