Pular para o conteúdo principal

Faz parte do seu show.

Não me lembro da passagem de um outro artista ter me deixado tão triste. Talvez George Harrison tenha me deixado com uma sensação parecida de angústia, de falta, de perda, por alguém que sequer conhecia. Mas aí está o ponto: Eu conhecia o grande artista que faleceu ante-ontem. Conhecia virtualmente, através das redes sociais em que o adicionei. Não éramos íntimos, nem poderíamos, mas éramos amigos sim, na medida do possível.

Eu sou fã de sua banda mais bem sucedida, o Herva Doce, desde a adolescência. Quando era mais jovem, queria ser como o baixista, Roberto Lly, magro, esguio e com a cara de Keith Richards, mas a genética me fazia me sentir mais parecido com Renato Ladeira. Gordinho assim como ele, ainda calhava de termos o mesmo nome.  E Renato era a voz do Herva Doce. Era da boca de Renato que saiam as palavras que influenciaram a minha forma de escrever música.

E sim, haviam as palavras. Muito além de Amante Profissional, uma canção comercial feita na medida para tocar no rádio, existia ali um poeta exprimindo suas angústias em músicas aparentemente bem humoradas, mas que, muitas vezes, haviam de ser lidas mais nas entrelinhas de seus versos do que na suposta superficialidade de seu tema. E, se necessitasse de um referendo, Renato Ladeira foi parceiro de Cazuza em uma de suas mais belas canções, "Faz parte do meu show". 

Renato sempre foi muito acessível. Me respondeu absolutamente todas as vezes em que escrevi alguma coisa para ele. Com isto, acabamos nos tornando "conhecidos de facebook". Desde que iniciei o projeto deste blog, já tinha pautado uma matéria sobre o Herva Doce e este texto, em três partes, saiu no início de maio. Publiquei a primeira parte e, meio temeroso dos caras não gostarem, linquei no perfil dele, Renato, e de Roberto Lly, que também estava adicionado ao meu. 

Para minha surpresa - ou não, pois ambos são grandes figuras - os dois reverberaram a matéria em seus perfis, tecendo elogios e fazendo a audiência deste humilde blog ir às alturas. Renato fez uma pequena correção ao primeiro texto, imediatamente aceita, e então, resolvi lhe enviar as outras duas partes, que seriam publicadas nos dias seguintes para uma revisão. Deixei-o a vontade para sugerir mudanças no que não lhe agradasse. A não ser eventuais derrapadas cronológicas, ele não mudou absolutamente nada.

No dia seguinte, Renato teve uma longa conversa on-line comigo. Falou da sua vida, das decepções e alegrias em seus mais de 60 anos de vida e alguns casamentos. Falou da alegria de ter encontrado em Patrícia Ladeira, a sua atual esposa, a pessoa certa. Eu mais ouvi, aliás, eu mais li do que escrevi. Ele não tinha idade suficiente para ser meu pai, então me senti, naquele momento, como se estivesse ouvindo relatos e conselhos de um irmão mais velho. Ao final, Renato me pediu desculpas pelo que chamou de "aluguel". Eu agradeci com a reverência de um discípulo.

Me recuso a falar de Renato Ladeira no passado. Renato é parte de minha adolescência, das minhas descobertas musicais. Suas canções me acompanham desde a juventude até hoje, à beira da meia idade. Se eu falar de Renato Ladeira no passado, estarei falando de mim mesmo da mesma forma. Morremos um pouco quando nossas referências se vão. Então, Renato não foi, não irá, ele é e sempre será. E sempre será, mesmo. Foi embora sem um bis, fazer o quê? Faz parte do seu show. A saudade que fica, também.
0






Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A CARTA ANÔNIMA

 Quando eu era menino, ainda ginasiano, lá pela sexta série, a professora resolveu fazer uma dinâmica bastante estranha. Naquele tempo ainda não tinha esse nome mas acho que ela quis mesmo fazer uma dinâmica, visto pelas lentes dos dias atuais. Ela pediu que cada aluno escrevesse uma carta anônima, romântica, se declarando para uma outra pessoa.  Eu confesso que não tive a brilhante ideia de escrever uma carta anônima para mim mesmo e assim acabei sem receber nenhuma carta falando sobre os meus maravilhosos dotes físicos e intelectuais. Já um outro garoto, bonitão, recebeu quase todas as cartas das meninas da sala. E sabe-se lá se não recebeu nenhuma carta vinda de algum colega do sexo masculino, escrita dentro de algum armário virtual. Eu, é claro, escrevi a minha carta para uma menina branca que nem papel, de óculos de graus enormes e um aparelho dentário que mais parecia um bridão de cavalos. Ela era muito tímida e recatada, havia nascido no norte europeu mas já morava...

Porque não existem filas preferenciais nos EUA.

Entrei em contato com um amigo norte-americano que morou por muitos anos no Brasil e o questionei sobre a razão de não haver filas preferenciais nas lojas norte-americanas. Ele me respondeu que não havia apenas uma mas várias razões. Uma delas é legal, porque é anticonstitucional. A enxutíssima constituição dos Estados Unidos simplesmente proíbe que determinado grupo social tenha algum direito específico sobre outro. Ou todos têm ou ninguém tem. Então, lhe questionei sobre as ações afirmativas na área de educação. Ele me respondeu que as ações afirmativas seriam constitucionais porque serviriam justamente para nivelar um grupo social em desigualdade aos outros. O que não seria, segindo ele, o caso de gestantes, idosos e deficientes físicos. A segunda razão seria lógica e até mesmo logística: Uma fila preferencial poderia ser mais lenta do que a fila normal e acabar transformando um pretenso benefício em desvantagem. Isto abriria espaço para ações judiciais no país das ações judic...

O SONHO

  Oi. Hoje eu sonhei contigo. Aliás, contigo não. Eu sonhei mesmo foi comigo. Comigo sim, porque o sonho era meu, mas também com você, porque você não era uma mera coadjuvante. Você era a outra metade dos meus anseios juvenis que, quase sexagenário que sou, jamais se concretizaram. Não que a falta de tais anseios me faça infeliz. Não faz. Apenas os troquei por outros, talvez mais relevantes, talvez não. Hoje de madrugada, durante o sonho, eu voltava a ter 20 anos e você devia ter uns 17 ou 18. Eu estava de volta à tua casa, recebido por você em uma antessala completamente vazia e toda branca. Branca era a parede, branco era o teto, branco era o chão. Eu chegava de surpresa, vindo de muito longe. Me arrependia e queria ir embora. Você  queria que eu ficasse, queria tirar minha roupa ali mesmo, queria que eu estivesse à vontade ou talvez quisesse algo mais. Talvez? Eu era um boboca mesmo. Você era uma menina bem assanhadinha, tinha os hormônios à flor da pele e eu era a sortuda ...