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CANÇÃO DO ENGATE - FLERTANDO COM O ROCK PORTUGUÊS - PARTE I

O Brasil desconhece homericamente a cultura de Portugal. É realmente uma pena, porque Portugal conhece muito bem o Brasil. E nesta falta de reciprocidade cultural, quem perde somos nós, porque o bojo cultural português é muito mais robusto que o nosso. Principalmente na música, o nosso ponto fraco e forte, Portugal teria muito a nos acrescentar. Não que Portugal também não tenha a sua música de “baixo (es)calão”. Tem sim, e é tão ruim ou até pior que a nossa.

Há quem, no Brasil, reclame do sotaque português. Bobagem. O Brasil é uma plêiade de sotaques distintos, que vão das vogais acentuadas nordestinas aos erres reverberantes do gaúcho. É estranho que um país tão habituado à pluralidade linguística de seu próprio território venha alegar justamente o estranhamento a um sotaque para evitar um determinado tipo de contato com a cultura de outro povo.
 
Xutos e Pontapés
Também há quem reclame, desta vez até com uma certa razão, das dificuldades de entender o que um português diz. Verdade. As vogais “comidas” no meio da palavra exigem um certo treinamento do ouvido brasileiro para que haja um perfeito entendimento. Inclusive, o "pronunciar" português é alvo de críticas até mesmo dentro do próprio país.
 
Mas é justamente isto: Para haver treinamento é necessário que haja interação. Depois de algum tempo em contato com o falar português, até nos esquecemos que as diferenças de um país e outro vão bem mais além do sotaque.

Um argumento muito comum também é o de que evitamos manter contato com Portugal por conta de mágoas que datam do tempo da colonização brasileira: “- Aqueles portugas nos roubaram”, alguns costumam dizer por aqui. Acontece que a independência do Brasil ocorreu há quase 200 anos e a proclamação da república, que varreu do mapa qualquer elo político maior – e iniciou o processo de afastamento cultural - com Portugal, se deu há quase 130. Se depois de mais de 13 décadas ainda não nos recuperamos da exploração colonial portuguesa, a culpa certamente não é deles. De mais a mais, não somos santos. Na guerra do Paraguai exterminamos 2/3 da população daquele país. Imaginem se, ainda hoje, os paraguaios fossem hostis a nós ou à nossa cultura?
 
Rui Reininho, vocalista do GNR
Principalmente na área da música, perdemos muito em não querer conhecer Portugal. O rock português, que assim como o rock local aqui, também estourou lá na década de 80, é muito mais interessante que o feito nestas e por estas bandas. Claro que conta, e muito, a proximidade deles com a matriz. Mas não há como reconhecer que o texto do rock português é infinitamente melhor do que o nosso. É como se lá houvesse uma Legião Urbana em cada esquina.

Descobri o rock lusitano lá pelo meio da década de 80 com o disco Psicopátria da banda portuguesa GNR. Liderado por Rui Reininho, uma espécie de Lulu Santos lusitano, o GNR leva seu nome em uma homenagem torta à polícia federativa do país. GNR significa "Grupo Novo Rock" mas, na verdade é uma referência à “Guarda Nacional Revolucionária”, a polícia política da ditadura salazarista. A ditadura acabou, a polícia local não mudou de nome, e a banda viu surgir outra nos EUA, de sucesso mundial, cujas iniciais também eram GNR. Mas, dentro de seu país, a importância dos GNR é incontestável. Até hoje, Reininho é considerado um dos melhores letristas de lá.

Delfins
Com o advento do mp3 e dos programas de troca de arquivos, podemos ouvir outras bandas que só conhecíamos por nome, mas nunca se tinha escutado, como Xutos e Pontapés, Heróis do Mar, Mer Ifle Dada, e os Delfins. Destes últimos, uma música em particular me conquistou instantaneamente: “Canção do Engate”. “Engatar”, na gíria de Portugal, significa “flertar”, “paquerar”. 
 
A canção, belíssima, depois eu descobriria, era uma regravação dos Delfins para um original de um músico lusitano chamado António Variações. Adentrar no universo de Variações, além de um mergulho perfeito na cultura pop oitentista portuguesa, também é imergir no mundo obscuro de um artista que, tivesse nascido inglês, estaria no mesmo panteão de ídolos atormentados como Ian Curtis, Syd Barrett e Morrissey.
(Continua).

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