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O DIA EM QUE O ROCK BROCHOU - PARTE II

        Admito que eu não tenho nada de muito consistente contra os Los Hermanos, a não ser, simplesmente, não gostar do tipo de música que eles produzem. Na verdade, o grupo carioca me incomoda muito mais pela multidão de bandas-clone que surgiram influenciadas por eles. Tais grupos sempre estiveram dois degraus acima deles em matéria de chatice, e regurgitaram ainda mais a sonoridade indecisa entre o rock e a MPB que consagrou os cariocas barbudos.

Los Hermanos
Bom dizer que os Los Hermanos não estavam sozinhos em seu reinado pop ao final dos anos 90. Na margem oposta do rio havia o Charlie Brown Jr., com seu vocalista Chorão adolescendo tardiamente em público, vociferando letras primárias e burilando uma sonoridade que passeava entre o reggae e o hardcore, sem no entanto, fazer com que a mistura soasse uniforme e convincente. 

Lá pelo início do milênio, a música jovem do país estava polarizada entre duas bandas, o Charlie Brown Jr. e Los Hermanos. O legado de Chorão e sua trupe para o rock nacional é igualmente infame: Da mesma forma que os clones dos Los Hermanos se proliferaram como moscas, a geração de “influenciados” pelo Charlie Brown Jr. não é menos numerosa. Toda uma geração de bandas duvidosas, como Cine, Restart, NXZero, Hevo 84, citam Charlie Brown Jr. como principal influência.

Charlie Brown Jr.
Curiosamente, as duas bandas têm, cada uma, pelo menos uma grande canção. Do Charlie Brown Jr. a eleita é “Proibida Pra Mim”. Esqueça a letra simplória - ou até lembre dela, pois é charmosa - e se concentre na batida ska de uma canção meio defeituosa, porém energética, em que a melodia do corpo é bem mais interessante que o refrão. Dos Los Hermanos, claro, não poderia ser outra senão “Anna Julia”. A canção, um verdadeiro clássico pop, delicada e bem construída, chegou a ser regravada por Jim Capaldi, ex-baterista do Traffic e brasileiro honorário, com a participação de ninguém menos que George Harrison.

Titãs
Enquanto "Proibida Pra Mim" nunca deixou de ser tocada em um show do Charlie Brown, o mesmo não pode ser dito de "Anna Julia", proibida para os músicos e os fãs dos Los Hermanos. A má vontade da banda em tocar seu clássico remonta a dois episódios do rock brazuca envolvendo duas das maiores bandas dos anos 80, os Titãs e o Ira!, No início dos anos 80, os Titãs lançaram dois excelentes discos que traziam uma espécie de linguagem neotropicalista. No terceiro LP, Cabeça Dinossauro, resolveram desfazer tudo que tinham feito e se tornar mais uma banda punk de São Paulo. Reescreveram músicas dos Inocentes e Mercenárias e pariram um disco clássico e divisor de águas do rock nacional. Para tanto resolveram que não tocariam mais as coisas dos dois primeiros discos, principalmente o mega-hit “Sonífera Ilha”.

Ira!
Voltariam atrás um tempo depois quando se deram conta que todo aquele radicalismo pré-adolescente não combinava mais com senhores contemplando a meia idade. E, principalmente, porque seu público queria ouvir “Sonífera Ilha”. Mas a verdade é que, em 1986, ninguém conseguiu convencer os Titãs a tocar a canção que os fez famosos no país inteiro. Uma outra situação envolveu o Grupo Ira!, que se recusou a fazer playback usando gorro de papai Noel em um programa especial de natal do Chacrinha e viu as portas dos programas da Globo se fecharem para eles. 

Após o sucesso estrondoso com a canção Anna Julia, os Los Hermanos resolveram seguir os passos dos Titãs e deixaram de tocar seu grande sucesso. Por incrível que pareça, tiveram total apoio dos seus fãs. Se os Los Hermanos não queriam mais tocar Anna Julia, seu fiel público também não queria ouvi-la. E os shows sem ter a canção no set list acabaram se tornando uma parte do folclore da banda. E não havia ninguém que os fizessem tocar seu maior sucesso. Eles não executavam mais aquela música e pronto.

Los Hermanos no Faustão
Mas no meio do caminho havia o Faustão, que acreditou que obrigar os Los Hermanos a tocar Anna Julia em seu programa seria uma ótima ideia. Pressionados, os hermanos finalmente se renderam e tocaram a amaldiçoada canção em um domingo qualquer de 2004. No vídeo, disponível no You Tube, a tensão e o constrangimento dos integrantes é visível. Justamente a banda mais íntegra de todas, a que preservaria a sua arte a todo custo, fez uma estúpida concessão a um apresentador de televisão.

E, desta vez, não havia a desculpa da pressão dos fãs, que não estavam nem aí para Anna Julia. Não foi uma necessidade mercadológica, como acontecera com os Titãs. A visão estreita do Faustão não conseguia assimilar que uma banda poderia estourar no país inteiro com uma canção e não a tocar mais em shows. Fausto Silva não entendeu que, no caso dos Hermanos, isto não fazia mais a menor diferença. Não havia, entre seu público, realmente mais ninguém interessado em que eles tocassem Anna Julia, fosse na televisão ou em shows.

Naquela tarde, eu assistia ao Faustão e, vendo aquilo,  acompanhando a dolorosa via crucis do grupo, me lembrei imediatamente dos casos dos Titãs e do Ira!, que perderam shows e participações em programas de TV em nome de uma convicção. Convicção tola até, mas que mantiveram até quando não fizesse mais sentido mantê-la. Na verdade, naquele domingo, pela primeira vez, me solidarizei com os Los Hermanos e a banda pareceu, de alguma forma, simpática para mim. Certamente, não foi nada fácil voltar atrás e tocar Anna Julia na televisão "pela última vez", como Fausto Silva faz questão de salientar no vídeo.  Os erros e a péssima execução comprovam isso. Ainda mais porque não haveria razão alguma para tocar aquela música novamente, a não ser satisfazer os caprichos de um poderoso nome da TV brasileira.  Tive a absoluta e clara certeza de que, naquele domingo morno de janeiro, o rock nacional, que já andava faz muito tempo a meio mastro, finalmente,  brochou de vez.

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